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sexta-feira, 21 de junho de 2013

[FEITO A MÃO] Antropofagia, Segunda Parte



 
Comer. Nem sempre, você precisa matar pessoas ou literalmente cortar a carne delas para devorá-las mastigando mecanicamente. Algumas vezes, tudo o que você precisa é se relacionar ou se conectar com alguém. E, então, um de vocês cairá para o outro se erguer. Sob esta interpretação, você pode dizer que isto se parece com o amor.
     O processo cruel de "tornar-se forte em um meio" pode ser descrito, na mente de uma pessoa chamada Ernesto, como um ato de devorar pessoas para saciar suas necessidades de força. Não que esteja realmente desejando isto: as coisas simplesmente ocorrem até ele ser derrubado morto.
   Acompanhe este conto de duas partes :B A primeira parte está aqui, meus queridos.


 Antropofagia, Segunda Parte (final).

   Um pouco depois de eu entrar na universidade, não demora a que mamãe peça o divorcio. Após alguns dias, não a vejo mais ao meu redor. Sempre longe, com algum homem considerado bonito e uma bebida em mãos. Enquanto isso, papai tenta prosseguir a vida, ainda com pesos nas costas, para poder se manter forte. É com ele que consigo apoio para poder me mudar. E, só então mais uns meses, caço um emprego.
   Para minha surpresa, consigo um estágio. Tenho um bom currículo e tive uma boa impressão ao ser entrevistado por minha chefe, uma mulher que parece estar quase sempre de bom humor. Isto me lembra um pouco de Haroldo, porém, ao que tudo indica, ela não possui razões para se matar. Não preciso interrogá-la: é só ouvir o modo como Jéssica fala de seus irmãos e de seus filhos para ter esta certeza. Sem querer, também consigo sua simpatia. Percebo isto apenas depois de um colega, funcionário da mesma empresa há cinco anos, indicar.
   Do meu apartamento para o prédio de vidro do Tribunal, tenho que atravessar a cidade durante o dia (como já não bastasse ir ao campus de noite). Com todo aquele trânsito estressante, com aquelas faixas de pedestre e os olhares interesseiros. Caminho mais com meus pés ou de ônibus do que com carros. Não quero parecer especial para poder atrair a atenção das pessoas. Camuflar na multidão é um dom que venho desenvolvido. Só que algo sempre me faz ser percebido pelos outros a ponto de ser coletado como um rato fujão.
— Rapazinho, rapazinho. — Jéssica costuma cantar, em uma zoação amistosa. — Não se dê tanto trabalho sem uma recompensa. — eu sempre ouço o teclar de seu computador.
— Recompensa? — na primeira vez, questionei. — Nunca pensei muito nisso...
— Dê algo a você que goste. — sugeriu ela, lançando-me um olhar preocupado.
    Nunca pensaria em algo tão difícil como aquilo. Acaba que, por orientação de uma amiga de universidade, termino o final de semana passeando por todos os brinquedos de um parque de diversões, como bastante coisa e tiro algumas fotos e... Quando vem segunda-feira, sou obrigado a ir a um médico por conta das dores na minha barriga. Não demoro a ficar internado no hospital por conta de alguma infecção.
— Isso foi um exagero, convenhamos. — Jéssica comenta assim que sabe da notícia, por telefone, enquanto tenho que teclar neste laptop. — Você precisa curtir a vida de forma mais tranquila, tentar ver o que você come e... Principalmente... Uma mudança de visual.
— Mudança de visual? — comento, mal podendo arquear uma sobrancelha. — Você está dizendo isso como minha chefe?
— Mais ou menos. — ouço-a suspirar no outro lado da linha. — Falo mais como uma amiga.
   Fico emudecido por um longo tempo. Faz um longo período que poucas pessoas falam desta forma comigo. Continuo a conversar sobre os negócios do escritório, após suspirar e ser liberado do hospital uma semana seguinte. Ao voltar ao trabalho, deparo-me com um senhor de idade carregando placas de papelão sobre humildade. Algumas pessoas aplaudem, outras rirem e umas ignoram. Meus pés se viram por um instante, as palavras pintadas gravadas na minha cabeça, e então volto ao meu oficio.
   Alguns, como a mim, são liberados mais cedo. Por conta de alguns compromissos da empresa, volto para meu apartamento (mais uma vez). É quase o pôr-do-sol, logo, com cautela para os lados, vou a pé de lá pra cá. Pelas avenidas e cruzamentos que passo, vejo alguns conhecidos e um monte de desconhecidos. O mais estranho é ver mais pessoas que não conheço sendo gentis comigo do que as quais sei os nomes e já falo por dias. Vai escurecendo e o Sol passa a subir até desaparecer para dar o lugar de destaque a Lua. Faltam alguns tantos quarteirões para chegar ao meu edifício residencial quando, próximo de um lixão, ouço uma voz.
— Moço, você tem alguma comida por aí? — e, embaixo de um pouco da luz do poste público e sentado em um pedaço de papelão, vejo um garoto manchado de sujeira bastante magro com alguns machucados no corpo.
    Acho que me encontro em um dilema. Fico preocupado com essas marcas, mas não sei o porquê delas estarem aí. Talvez ele seja alguém que use drogas e que provavelmente possa não ser um menino ignorante se tiver o suposto mau caráter. Mas estranho que, se fosse isso, pede alimento ao invés de dinheiro. E então percebo que ainda estou parado no mesmo lugar, na frente dessa pessoa pequena que me encara confuso, como se ir embora não fosse a melhor opção.
— Por que você está com essas marcas? — questiono após uns poucos minutos de silêncio.
— Mar...Marcas? — com expressão de quem não me entende, ele me pergunta e eu olho para suas feridas que parecem infeccionadas. — Ah, bem... — finalmente as percebendo, seus olhos pairam um pouco nelas até voltá-los para mim com um sorriso triste. — Esse é um bairro realmente perigoso, você sabia? — na minha cabeça, imagino se o garoto se meteu em brigas.
— Elas doem? — talvez a pergunta pareça estúpida e obvia, mas interrogo sem pensar.
— Para um estranho, você está fazendo várias perguntas. — após uns segundos em silêncio me fitando, o menino suspira e se mexe onde se senta para pôr seus braços e pernas perto do tronco. — Você não tem medo que alguém do nada vá até você e tire sua vida enquanto estamos conversando? — sem olhar para mim, ele me pergunta com um riso sarcástico.
— Há alguém por aqui? — interrogo curioso, dando passos para trás a fim de ver a área.
— Além de mim? — ele arqueia uma sobrancelha ao ver meus olhos encarando algumas pichações nas lojas próximas daqui. — Não, todos foram embora. Mas eles podem voltar.
   Ponho minhas mãos nos bolsos do meu casaco e penso em uma solução para este problema. Não o garoto, claro, mas... Se eu pudesse pagar, traria uma refeição. Só que não tenho dinheiro o suficiente além de algo que dá pra uma passagem de ônibus para emergências. Também sinto fome, porém, não costumo comer fora de casa. E, ao ponderar sobre o que ia fazer na cozinha, uma ideia surge na minha mente. Meio louca, embora não soubesse se faria ou não por conta da antropofagia.
   Não que eu coma carne humana. Ou que participe de algum ritual indígena. Ou que eu seja canibal. Não é isso. Só que, na minha opinião, o sistema que rege nossa dependência quanto a economia e a política faz com que nós tenhamos que escolher entre devorar partes do ser de uma pessoa ou se deixar ser devorado pelas outras pessoas. Comer no sentido de absorver, de tirar, de extrair sem talvez nunca devolver. Durante minha vida – ou sobrevida, como posso chamá-la – vi pessoas sofrendo ou morrendo enquanto simultaneamente partes de mim e delas eram consumidas de forma voraz sem ao menos notarmos.
   Entre outras palavras, posso estar no meu limite. Na questão de ser, é possível que, além dos ossos, restam apenas algumas partes do resto de minha pessoa. A algum ponto, minhas emoções vão estourar por um tempo indeterminado como também minha própria razão. Então, uma alternativa seria padecer à Morte ou... Talvez, fazer algo por alguém antes que chegue minha hora. Olho para o garoto, o qual pôs a mão na cabeça e fechou os olhos, e depois para baixo. Acho que cheguei a uma decisão.
— Você tem como dormir? — começo a interrogar, não tendo certeza se é uma escolha segura, mas... Bom, tudo bem. Estou acostumado a estar sozinho, mas tenho ainda espaço.
— Eu posso bem me virar por aqui. — ele indica o pedaço de papelão onde está sentado. — Posso também pedir a alguém pela vizinhança pra me doar algum cobertor. Se é o que está me perguntando. — os olhos dele se abrem e tenho a impressão do castanho ser meio vermelho. — Não quero que tenha muita compaixão fora a comida, senhor. É meio... vergonhoso pedir aqui. — e fez uma careta ao torcer o nariz e rir.
— N-Não tenho como te dar... comida agora. — passo minha mão na outra ao me sentir com frio e este parecer me envolver desde o pescoço para baixo. — Mas eu ia fazer em casa, é perto daqui e... — vejo seu olhar se fixar surpreso em mim e logo se reduzir em desconfiança.
— Espera aí. — ele me diz. — Você está me convidando a ir à sua casa pra jantar?
— É. — digo após engolir em seco, sentindo-me nervoso porquê... Acredito que não seja bom em explicar coisas para pessoas em geral. — É só um convite por hoje, mas se não quiser...
— Um convite pra um moribundo estranho? — o garoto me lança um sorriso torto, um daqueles que mostram os dentes. — Não, não esquenta. Eu tô dentro. — e se ergue para ir até a mim.
   Fico surpreendido pela rápida disposição, sem muitas questões sobre minhas razões – geralmente, é o que as pessoas fariam se eu interrogasse isto –, mas tudo bem. Abandonando seu canto no papelão, observo, de relance, alguns caras inclinados na penumbra de becos como esperassem que nós fôssemos embora. Recordo-me dos machucados do garoto e de como este parecia, por mais que abatido, tranquilo.
   Então, eu me pergunto se esses acontecimentos não estão relacionados. E vou andando, com o menino me interrogando a algumas coisas (muitas pessoais, logo peço para que ele as passe) enquanto nossos pés se movem, na rota onde sempre vou. Onde não há muita gente por perto, há calmaria e pouco risco das pessoas irem com a criança. Nós dois nos deslocamos lado-a-lado e isso é motivo para que minhas pernas gelem antes que pudéssemos ser colocados à vista pelo condomínio. Sorte que é um horário onde poucos podem nos ver.
   Porém, somos obrigados a usar a escada quando o sindico repentinamente chega e põe seus olhos em nossas cabeças. Para mim, está tudo bem e não vejo o outro ter por causa de:
— Eu consigo ver no escuro bem. — ele me diz calmo ao me ver encarando as luzes fracas.
   Assim, andamos para um dos andares mais desocupados, abro minha porta e o garoto entra. Prossigo, então, o procedimento de orientá-lo a tirar as roupas dentro do pequeno banheiro e tomar um banho. A criança me encara quando vou para fora a fim de questionar, pela última vez, se conseguiria fazer isso – manusear o shampoo, condicionador e sabonete indicado. E acaba gesticulando que “claro que sim” antes de eu me distanciar, já tendo posto algumas roupas velhas próximo do Box do chuveiro e também uma toalha, em parte, para já ir preparando um prato na cozinha.
    Quando, tendo feito o feijão com arroz e salada, vou preparar o bife, sinto dois braços pequenos em volta de mim. E isso é bastante estranho, porquê, fora o que acaba de acontecer, ainda há os dedos que procuram algo no meu pescoço e, segundo o espelho aqui próximo, os dentes dele estão se aproximando.
— O que você pensa que está fazendo? — diante de tal ato, arregalo meus olhos e o encaro.
— O que você acha que eu estava fazendo? — o garoto, quem eu descobri se corresponder como ‘Bisteca’ nas nossas conversar no caminho, diz com sarcasmo e um sorriso. — É quase impossível que alguém que leve um jovem de rua possa ter uma boa intenção só pra fazer uma suposta caridade. — ouço isso como uma espécie de desafio, pois o tom é de zombaria.
— Não. — confuso com as palavras e aquela ação estranha, volto ao assunto. — O que você estava fazendo? — tenho um pouco de medo, talvez ele perceba por conta de seus olhos me enviando uma expressão de estranhamento como se eu fosse esquisito.
   Bem, realmente acho que eu seja mesmo.
— É sério que você não... — seu dedo aponta para mim ao abrir a boca sem mais palavras, até sacudir a cabeça em negativo, levar suas mãos ao rosto, suspirar fundo e finalmente me fitar desconfiado. — Olha, esquece aquilo, falou? Vou esperar o jantar ali naquela mesa.
   Depois daquilo, não há muitos problemas. Com tranquilidade, ponho a refeição no lugar e o servi. Quando nos sentamos e comemos um pouco, ele passa a me perguntar sobre minha família e se tenho alguma namorada. Ao tocar no segundo assunto (disse que não era hora de falar sobre meus parentes, pois tento esquecer um pouco por serem memórias doloridas), não me contenho em rir. Ao ser questionado, só digo “Bom, não sei se você vai acreditar, mas não tenho o mínimo interesse de ter algum relacionamento. Prefiro ficar sozinho”. E sei que, após essa declaração, Bisteca fica uma semana tentando me convencer que isso é improvável.
   O mais engraçado é que, embora a criança tenha me dito que ficaria apenas um dia para jantar, acabo a encontrando em casa – sabe-se como ela entrou sem chave – e dizendo que gostaria de morar aqui. Vendo-me com este caso, sento e penso consigo mesmo em como posso resolver. Esta pessoa é ainda uma criança, como minha irmã já fora quando viva, e não devo o deixar sozinho. Suspiro e proponho que ele fique morando comigo por um tempo, ao menos até onde possamos dar um jeito. Após ouvir sua resposta (estranho que ele esteja animado com isso), prossigo em tentar arranjar sua adoção com minha mãe para que eu tenha o direito, por lei, de cuidá-lo. Passam-se anos até seus dezoito, idade em que o vejo sair daqui.
   Agora, um pouco mais velho e vendo-o me passar uma mensagem eletrônica sobre vir aqui depois de uns quatro anos estudando na Europa – isso porquê eu tive que ameaçá-lo um pouco para que fosse atrás dos sonhos dele –, fico nesta varanda sentindo vento, acomodado sozinho e tomando um café. E, então, sinto a rotineira dor de cabeça que fica mais forte e sei que é possível que minha pessoa não dure até o mundo me devorar vivo.
FIM
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