Comer.
Nem sempre, você precisa matar pessoas ou literalmente cortar a carne
delas para devorá-las mastigando mecanicamente. Algumas vezes, tudo o que você precisa é se
relacionar ou se conectar com alguém. E, então, um de vocês cairá para o
outro se erguer. Sob esta interpretação, você pode dizer que isto se parece com o amor.
O processo cruel de "tornar-se forte em um meio" pode ser descrito, na mente de uma pessoa chamada Ernesto, como um ato de devorar pessoas para saciar suas necessidades de força. Não que esteja realmente desejando isto: as coisas simplesmente ocorrem até ele ser derrubado morto.
Acompanhe este conto de duas partes :B A primeira parte está aqui, meus queridos.
O processo cruel de "tornar-se forte em um meio" pode ser descrito, na mente de uma pessoa chamada Ernesto, como um ato de devorar pessoas para saciar suas necessidades de força. Não que esteja realmente desejando isto: as coisas simplesmente ocorrem até ele ser derrubado morto.
Acompanhe este conto de duas partes :B A primeira parte está aqui, meus queridos.
Antropofagia, Segunda Parte (final).
Um pouco depois de eu entrar na
universidade, não demora a que mamãe peça o divorcio. Após alguns dias, não a
vejo mais ao meu redor. Sempre longe, com algum homem considerado bonito e uma
bebida em mãos. Enquanto isso, papai tenta prosseguir a vida, ainda com pesos
nas costas, para poder se manter forte. É com ele que consigo apoio para poder
me mudar. E, só então mais uns meses, caço um emprego.
Para minha surpresa, consigo um estágio.
Tenho um bom currículo e tive uma boa impressão ao ser entrevistado por minha
chefe, uma mulher que parece estar quase sempre de bom humor. Isto me lembra um
pouco de Haroldo, porém, ao que tudo indica, ela não possui razões para se
matar. Não preciso interrogá-la: é só ouvir o modo como Jéssica fala de seus
irmãos e de seus filhos para ter esta certeza. Sem querer, também consigo sua
simpatia. Percebo isto apenas depois de um colega, funcionário da mesma empresa
há cinco anos, indicar.
Do meu apartamento para o prédio de vidro do
Tribunal, tenho que atravessar a cidade durante o dia (como já não bastasse ir
ao campus de noite). Com todo aquele trânsito estressante, com aquelas faixas
de pedestre e os olhares interesseiros. Caminho mais com meus pés ou de ônibus
do que com carros. Não quero parecer especial para poder atrair a atenção das
pessoas. Camuflar na multidão é um dom que venho desenvolvido. Só que algo
sempre me faz ser percebido pelos outros a ponto de ser coletado como um rato
fujão.
— Rapazinho, rapazinho. —
Jéssica costuma cantar, em uma zoação amistosa. — Não se dê tanto trabalho sem
uma recompensa. — eu sempre ouço o teclar de seu computador.
— Recompensa? — na primeira
vez, questionei. — Nunca pensei muito nisso...
— Dê algo a você que goste.
— sugeriu ela, lançando-me um olhar preocupado.
Nunca pensaria em algo tão difícil como
aquilo. Acaba que, por orientação de uma amiga de universidade, termino o final
de semana passeando por todos os brinquedos de um parque de diversões, como
bastante coisa e tiro algumas fotos e... Quando vem segunda-feira, sou obrigado
a ir a um médico por conta das dores na minha barriga. Não demoro a ficar
internado no hospital por conta de alguma infecção.
— Isso foi um exagero,
convenhamos. — Jéssica comenta assim que sabe da notícia, por telefone, enquanto
tenho que teclar neste laptop. — Você precisa curtir a vida de forma mais
tranquila, tentar ver o que você come e... Principalmente... Uma mudança de
visual.
— Mudança de visual? —
comento, mal podendo arquear uma sobrancelha. — Você está dizendo isso como
minha chefe?
— Mais ou menos. — ouço-a
suspirar no outro lado da linha. — Falo mais como uma amiga.
Fico emudecido por um longo tempo. Faz um
longo período que poucas pessoas falam desta forma comigo. Continuo a conversar
sobre os negócios do escritório, após suspirar e ser liberado do hospital uma
semana seguinte. Ao voltar ao trabalho, deparo-me com um senhor de idade
carregando placas de papelão sobre humildade. Algumas pessoas aplaudem, outras
rirem e umas ignoram. Meus pés se viram por um instante, as palavras pintadas
gravadas na minha cabeça, e então volto ao meu oficio.
Alguns, como a mim, são liberados mais cedo.
Por conta de alguns compromissos da empresa, volto para meu apartamento (mais
uma vez). É quase o pôr-do-sol, logo, com cautela para os lados, vou a pé de lá
pra cá. Pelas avenidas e cruzamentos que passo, vejo alguns conhecidos e um
monte de desconhecidos. O mais estranho é ver mais pessoas que não conheço
sendo gentis comigo do que as quais sei os nomes e já falo por dias. Vai escurecendo
e o Sol passa a subir até desaparecer para dar o lugar de destaque a Lua.
Faltam alguns tantos quarteirões para chegar ao meu edifício residencial
quando, próximo de um lixão, ouço uma voz.
— Moço, você tem alguma
comida por aí? — e, embaixo de um pouco da luz do poste público e sentado em um
pedaço de papelão, vejo um garoto manchado de sujeira bastante magro com alguns
machucados no corpo.
Acho que me encontro em um dilema. Fico
preocupado com essas marcas, mas não sei o porquê delas estarem aí. Talvez ele
seja alguém que use drogas e que provavelmente possa não ser um menino
ignorante se tiver o suposto mau caráter. Mas estranho que, se fosse isso, pede
alimento ao invés de dinheiro. E então percebo que ainda estou parado no mesmo
lugar, na frente dessa pessoa pequena que me encara confuso, como se ir embora
não fosse a melhor opção.
— Por que você está com
essas marcas? — questiono após uns poucos minutos de silêncio.
— Mar...Marcas? — com
expressão de quem não me entende, ele me pergunta e eu olho para suas feridas
que parecem infeccionadas. — Ah, bem... — finalmente as percebendo, seus olhos
pairam um pouco nelas até voltá-los para mim com um sorriso triste. — Esse é um
bairro realmente perigoso, você sabia? — na minha cabeça, imagino se o garoto
se meteu em brigas.
— Elas doem? — talvez a
pergunta pareça estúpida e obvia, mas interrogo sem pensar.
— Para um estranho, você
está fazendo várias perguntas. — após uns segundos em silêncio me fitando, o
menino suspira e se mexe onde se senta para pôr seus braços e pernas perto do
tronco. — Você não tem medo que alguém do nada vá até você e tire sua vida
enquanto estamos conversando? — sem olhar para mim, ele me pergunta com um riso
sarcástico.
— Há alguém por aqui? —
interrogo curioso, dando passos para trás a fim de ver a área.
— Além de mim? — ele arqueia
uma sobrancelha ao ver meus olhos encarando algumas pichações nas lojas
próximas daqui. — Não, todos foram embora. Mas eles podem voltar.
Ponho minhas mãos nos bolsos do meu casaco e
penso em uma solução para este problema. Não o garoto, claro, mas... Se eu
pudesse pagar, traria uma refeição. Só que não tenho dinheiro o suficiente além
de algo que dá pra uma passagem de ônibus para emergências. Também sinto fome,
porém, não costumo comer fora de casa. E, ao ponderar sobre o que ia fazer na
cozinha, uma ideia surge na minha mente. Meio louca, embora não soubesse se
faria ou não por conta da antropofagia.
Não que eu coma carne humana. Ou que
participe de algum ritual indígena. Ou que eu seja canibal. Não é isso. Só que,
na minha opinião, o sistema que rege nossa dependência quanto a economia e a
política faz com que nós tenhamos que escolher entre devorar partes do ser de
uma pessoa ou se deixar ser devorado pelas outras pessoas. Comer no sentido de
absorver, de tirar, de extrair sem talvez nunca devolver. Durante minha vida –
ou sobrevida, como posso chamá-la – vi pessoas sofrendo ou morrendo enquanto
simultaneamente partes de mim e delas eram consumidas de forma voraz sem ao
menos notarmos.
Entre
outras palavras, posso estar no meu limite. Na questão de ser, é possível que,
além dos ossos, restam apenas algumas partes do resto de minha pessoa. A algum
ponto, minhas emoções vão estourar por um tempo indeterminado como também minha
própria razão. Então, uma alternativa seria padecer à Morte ou... Talvez, fazer
algo por alguém antes que chegue minha hora. Olho para o garoto, o qual pôs a
mão na cabeça e fechou os olhos, e depois para baixo. Acho que cheguei a uma decisão.
— Você tem como dormir? —
começo a interrogar, não tendo certeza se é uma escolha segura, mas... Bom,
tudo bem. Estou acostumado a estar sozinho, mas tenho ainda espaço.
— Eu posso bem me virar por
aqui. — ele indica o pedaço de papelão onde está sentado. — Posso também pedir
a alguém pela vizinhança pra me doar algum cobertor. Se é o que está me
perguntando. — os olhos dele se abrem e tenho a impressão do castanho ser meio
vermelho. — Não quero que tenha muita compaixão fora a comida, senhor. É
meio... vergonhoso pedir aqui. — e fez uma careta ao torcer o nariz e rir.
— N-Não tenho como te dar...
comida agora. — passo minha mão na outra ao me sentir com frio e este parecer
me envolver desde o pescoço para baixo. — Mas eu ia fazer em casa, é perto
daqui e... — vejo seu olhar se fixar surpreso em mim e logo se reduzir em
desconfiança.
— Espera aí. — ele me diz. —
Você está me convidando a ir à sua casa pra jantar?
— É. — digo após engolir em
seco, sentindo-me nervoso porquê... Acredito que não seja bom em explicar
coisas para pessoas em geral. — É só um convite por hoje, mas se não quiser...
— Um convite pra um
moribundo estranho? — o garoto me lança um sorriso torto, um daqueles que
mostram os dentes. — Não, não esquenta. Eu tô dentro. — e se ergue para ir até
a mim.
Fico surpreendido pela rápida disposição,
sem muitas questões sobre minhas razões – geralmente, é o que as pessoas fariam
se eu interrogasse isto –, mas tudo bem. Abandonando seu canto no papelão,
observo, de relance, alguns caras inclinados na penumbra de becos como esperassem
que nós fôssemos embora. Recordo-me dos machucados do garoto e de como este parecia,
por mais que abatido, tranquilo.
Então, eu me pergunto se esses
acontecimentos não estão relacionados. E vou andando, com o menino me
interrogando a algumas coisas (muitas pessoais, logo peço para que ele as
passe) enquanto nossos pés se movem, na rota onde sempre vou. Onde não há muita
gente por perto, há calmaria e pouco risco das pessoas irem com a criança. Nós
dois nos deslocamos lado-a-lado e isso é motivo para que minhas pernas gelem
antes que pudéssemos ser colocados à vista pelo condomínio. Sorte que é um horário
onde poucos podem nos ver.
Porém, somos obrigados a usar a escada
quando o sindico repentinamente chega e põe seus olhos em nossas cabeças. Para
mim, está tudo bem e não vejo o outro ter por causa de:
— Eu consigo ver no escuro
bem. — ele me diz calmo ao me ver encarando as luzes fracas.
Assim, andamos para um dos andares mais desocupados,
abro minha porta e o garoto entra. Prossigo, então, o procedimento de
orientá-lo a tirar as roupas dentro do pequeno banheiro e tomar um banho. A
criança me encara quando vou para fora a fim de questionar, pela última vez, se
conseguiria fazer isso – manusear o shampoo, condicionador e sabonete indicado.
E acaba gesticulando que “claro que sim” antes de eu me distanciar, já tendo
posto algumas roupas velhas próximo do Box do chuveiro e também uma toalha, em
parte, para já ir preparando um prato na cozinha.
Quando, tendo feito o feijão com arroz e
salada, vou preparar o bife, sinto dois braços pequenos em volta de mim. E isso
é bastante estranho, porquê, fora o que acaba de acontecer, ainda há os dedos
que procuram algo no meu pescoço e, segundo o espelho aqui próximo, os dentes
dele estão se aproximando.
— O que você pensa que está
fazendo? — diante de tal ato, arregalo meus olhos e o encaro.
— O que você acha que eu
estava fazendo? — o garoto, quem eu descobri se corresponder como ‘Bisteca’ nas
nossas conversar no caminho, diz com sarcasmo e um sorriso. — É quase
impossível que alguém que leve um jovem de rua possa ter uma boa intenção só
pra fazer uma suposta caridade. — ouço isso como uma espécie de desafio, pois o
tom é de zombaria.
— Não. — confuso com as
palavras e aquela ação estranha, volto ao assunto. — O que você estava fazendo?
— tenho um pouco de medo, talvez ele perceba por conta de seus olhos me
enviando uma expressão de estranhamento como se eu fosse esquisito.
Bem, realmente acho que eu seja mesmo.
— É sério que você não... — seu
dedo aponta para mim ao abrir a boca sem mais palavras, até sacudir a cabeça em
negativo, levar suas mãos ao rosto, suspirar fundo e finalmente me fitar
desconfiado. — Olha, esquece aquilo, falou? Vou esperar o jantar ali naquela
mesa.
Depois daquilo, não há muitos problemas. Com
tranquilidade, ponho a refeição no lugar e o servi. Quando nos sentamos e
comemos um pouco, ele passa a me perguntar sobre minha família e se tenho
alguma namorada. Ao tocar no segundo assunto (disse que não era hora de falar
sobre meus parentes, pois tento esquecer um pouco por serem memórias
doloridas), não me contenho em rir. Ao ser questionado, só digo “Bom, não sei
se você vai acreditar, mas não tenho o mínimo interesse de ter algum
relacionamento. Prefiro ficar sozinho”. E sei que, após essa declaração,
Bisteca fica uma semana tentando me convencer que isso é improvável.
O mais engraçado é que, embora a criança
tenha me dito que ficaria apenas um dia para jantar, acabo a encontrando em
casa – sabe-se como ela entrou sem chave – e dizendo que gostaria de morar
aqui. Vendo-me com este caso, sento e penso consigo mesmo em como posso
resolver. Esta pessoa é ainda uma criança, como minha irmã já fora quando viva,
e não devo o deixar sozinho. Suspiro e proponho que ele fique morando comigo por
um tempo, ao menos até onde possamos dar um jeito. Após ouvir sua resposta
(estranho que ele esteja animado com isso), prossigo em tentar arranjar sua
adoção com minha mãe para que eu tenha o direito, por lei, de cuidá-lo.
Passam-se anos até seus dezoito, idade em que o vejo sair daqui.
Agora, um pouco mais velho e vendo-o me
passar uma mensagem eletrônica sobre vir aqui depois de uns quatro anos
estudando na Europa – isso porquê eu tive que ameaçá-lo um pouco para que fosse
atrás dos sonhos dele –, fico nesta varanda sentindo vento, acomodado sozinho e
tomando um café. E, então, sinto a rotineira dor de cabeça que fica mais forte
e sei que é possível que minha pessoa não dure até o mundo me devorar vivo.
FIM
QUER PARTICIPAR DO FEITO A MÃO? TEM ESPAÇO PRA VOCÊ! ENVIE SEU CONTO PARA CONTATONRA@GMAIL.COM OU PUBLIQUE SEU DESENHO/POEMA NO NOSSO TUMBLR! QUEM SABE NA PRÓXIMA SEMANA NÃO É VOCÊ RECEBENDO OS COMENTÁRIOS!
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