Em
sua escola, você deve ter conhecido alguma pessoa com uma maior ginga para
costura ou para fazer seus cabelos ou para fazer sua maquiagem. Normalmente,
essa ajuda vai para meninas, mas esse não foi o caso de Paulo. Bianca é uma
menina pomposa que o ajudou em certos momentos no tempo de sete meses.
E é ela
de quem ele se relembra.
Mãozinhas
Já comia as lascas da manga que havia
encontrado na passagem da estação de ônibus até a rua da escola. Pedi a
uma moça da cozinha para me ajudar e dei a metade da fruta para a mulher
comer.
- Eca! – A menina repulsava. - Manga mancha roupa, sabia?
- Não vou pegar em você, se é o que quis dizer. - Informei Bianca,
indiferente pra a careta que a cabeça de vento fazia atrás da cadeira. -
E nunca tive essa pretensão.
- Não é isso! - Ela disse exasperada, puxando meu cabelo com mais força. Quase engasguei com a manga, caramba! Queria me matar? - Você vai estragar todo meu trabalho se sujar essa roupa, seu sapo seco!
Demorei a me recompor. Quando o fiz, franzi minha testa em ironia.
- Hã, sapo seco?! - Minha voz se alterou quando ri cínico. - Você mesma havia dito que tudo que toca vira uma obra-prima!
Os outros do camarim nos encaravam espantados. Pelo espelho, vi as
mãos dela ajeitando os cachos para parecerem bagunçados e ela parecia
pôr um monte de empenho para deixá-los como queria. Ela havia cortado
meu cabelo na altura dos ombros.
Bianca fechou os olhos com força.
- Foi há sete meses! - Bufou, tentando acentuar os cachos. Vi que suava. Não sabia pra que tanta irritação. - Sinceramente, Paulo, sua personalidade é rabugenta! Por mais que possa te fazer mais jovem, nunca vou conseguir te mudar!
- Gente, vão com calma aí... - Pediu o garoto que seria o
protagonista da nossa peça, Igor. Havia um chapéu com pena na cabeça. -
Estão fazendo muito barulho.
Revirei os olhos. “Não é culpa minha”, pensei, “ela está bem afobada ultimamente”
- Desculpa se eu não consigo ser delicadinho... - Suspirei cansado ao me entreter amargo com a última lasca, antes de limpar meus dedos com um guardanapo de papel.
- Perdão. - Bianca disse envergonhada ao se encolher. - Já estou
acabando, Igor. Não demorarei a liberar o Paulo. - E seu foco voltou
caloroso para minhas mechas ruivas. Não sei por quem, mas notei um tom
avermelhado no rosto dela.
Senti culpa. Aquela menina queria me ajudar. Nunca a pedi para fazer
algo por mim nos sete meses anteriores. Minha mãe gostava de meus
cabelos longos, pois os achava parecidos com os da irmã que a
abandonara. “Corte-os apenas quando se tornar um homenzinho disse no
hospital”, pondo-me próximo da cama para poder os pentear enquanto
víamos desenhos na pequena televisão do quarto.
Por conta disso, mantive-os assim que ela morrera. Meu pai fora
inicialmente contra minha decisão, mas, ao ver em respeito aos desejos
de mamãe, não me impedira mais. Só lançava olhares solenes quando alguém
na escola me fazia de piada. Por causa dos meus cabelos ruivos presos
em rabo de cavalo, fui chamado de Princesa Ariel várias vezes.
Até que Bianca os visara na sala de aula. Era uma aluna transferida
de um lugar que ninguém ouvira falar e nossos colegas fizeram montinhos
para conversar com ela. Nunca tivera interesse nela ou em seu cabelo
loiro, pois havia me acostumado a ficar sozinho. No entanto, ao ver sua
nota baixa em Química, ela me caçara na hora do lanche e propôs que a
ajudasse nos estudos em troca dela me ajudar no cabelo, na roupa e
maquiagem.
Não era um bom começo de uma amizade, pois assim que ouvi as palavras dela...
“Desculpa, mas...”,já pegava minha merenda para fugir. E a teimosa não ouvia um não.
Insistira incansavelmente para ajudá-la, explicando-me que, caso não
tivesse os melhores resultados no boletim, deveria ir para sua terra
natal. Houve choros irritantes. Só então cedi.
Depois de um mês a fazendo prestar atenção nas minhas explicações
sobre as matérias onde ela possuía dificuldade. Estranhava que Biologia,
Geografia e História fossem exceções. O local do reforço fora uma mesa
perto do refeitório. Usava minhas anotações detalhistas sobre cada aula
que assistia para fazê-la entender.
Nos tempos vagos, Bianca tentava persuadir uma conversa. Descobri que
a garota adorava tudo que fosse relacionado ao mar. Não entendia como
descrevia bem quando mal se atentava às aulas do nosso professor
biólogo. Estudava em casa e era acostumada a aprender o que pudesse viver. Concluí que a loira havia morado em uma ilha.
Isto quando o boletim dela viera com notas azuis. Quando ela me
mostrara, apenas abaixava meu olhar, apanhava um livro do Pedro Bandeira
para ler e só disse “Se tudo deu certo, então acabou”. Não me leve a
mal, mas não desgostava dela. Até me afeiçoei. Era um sentimento que achava parecido com o para minha mãe.
E... Mamãe... Ainda me doía pensar nela. E ver Bianca não me ajudava.
Só que, como vocês podem ter visto, a garota não aceitava um “Não
significa não!”. No dia seguinte, o coordenador de pátio corria seus
olhos atrás de nós com um interfone na mão dizendo nossos nomes mais de
cinquenta vezes. Por conta disso, exilei-me na biblioteca no intervalo e
na aula tentava escapar do aperto dela no pescoço. Não houve um momento
em que meu pai, olhando minha agenda escolar, não imaginasse:
“Meu filho virou um delinqüente”, podia vê-lo desabafar com a sua namorada.
Mas não me arrependia de minha decisão de evitar Bianca como podia.
Por mais que fosse impossível. Em uma vez, ao passarmeus dedos pelos
livros da sessão recente de literatura estrangeira, enxerguei-a me
observando pelo vidro que a separava da biblioteca. Havia os garotos
populares na sua órbita. Entreolhamo-nos por um momento, antes que eu
fosse suspirar e voltasse minha atenção para tentar achar o
recém-chegado livro da Diana W. Jones.
Pergunto-me se fora destino: Ao passar as mãos pela estante,
encontrei com outras bem finas. Pestanejava confuso e fui ver quem
estava ali também. Era uma garota de cabelos morenos ondulados e olhos
de cor de mel. Seu sorriso largo me parecia tão cativante que tive a
impressão de que era a primeira vez que não tinha uma palavra pensada
para trocar.
Depois que conversamos sobre literatura e que resolvemos estipular um
tempo para que nós dois pudéssemos ler confortavelmente ‘O Castelo
Animado’, sai apressado da biblioteca para poder tentar tomar um ar. Eu
me sentia tão estranho. Meu coração era um carnaval. Olhei por cima do meu ombro para os portões da biblioteca e, depois, para minha frente.
Surpreendia-me que, em um ímpeto, Bianca estivesse ali com os braços
cruzados e um sorriso melindroso nos lábios róseos. Como soubesse exatamente o que aconteceria.
“Paulinho, você está sem graça até agora”, ela comentou quando
chegamos à porta de sua casa. Estranhava a moradia. Não havia lâmpadas
na sala. O local era todo cercado de velas perfumadas e aquilo me
lembrava um aquário. “Aquela garota surte tanto efeito assim? Qual encantamento ela usou?”
“Bianca”, comecei controlado, “desde quando você não tem energia?”
Ela me encarou. “Tenho sim. Só que preciso economizar”
Espiava-a com curiosidade. “Pra quê?”, assim que questionei, a loira deu uma risada.
“Siga-me”, gesticulou animado ao jogar sua mochila no sofá e ir até a porta dos fundos.
Quando Bianca girou a fechadura e me mostrou o quarto, compreendi. Se
a sala já era estranha, o quarto superava: o chão era feito de vidro e
havia tijolos de vidro coloridos nas paredes, além de haver um aquário
monumental em um lado. Perto da penteadeira, havia uma grande coleção de
conchas e uma cadeira rolante. Um lustre azul iluminava no teto, este
decorado com pinturas que pareciam borrões de algum palácio mirabolante
no fundo do mar.
“...É viciada?”, fiz a pergunta que pareceu inconveniente, pois a
loira torceu o nariz e me deu um empurrão até a cadeira. “Primeiro sabe
de biologia marinha mais do que nosso professor e agora parece alguém
que sonha com sereias”
“Isso não é um sonho!”, ouvi-a protestar com o rosto todo vermelho
antes de resmungar algo sobre insensibilidade. Revirei os olhos. Em
primeiro lugar, ela é quem me trouxe. “É um modo de...”, vi-a umedecer
os beiços, “Não sentir saudades de casa e ser quem quero...”
“Eram pesquisadores de vida marinha?”, indaguei, girando a cadeira para vê-la melhor.
Observei-a abrir a boca e, depois, fechar. “Perto disso”, disse de
forma vaga ao desviar o olhar para uma das gavetas do armário ao lado da
penteadeira para começar a revirá-lo. “Preciso que você desamarre seus
cabelos para eu fazer uma coisa neles”
“Agora?”, levantei minhas sobrancelhas, “Achei que tivesse me convidado para um chá.”
“E você esperava que fôssemos conversar sobre como você é um desastre
com as garotas?”, vi-a estreitar os olhos com sarcasmo. Passei a mão
pelo rosto. Putz. Havia esquecido que a menina era uma lunática. “Não,
senhor! Fazer uma menina te notar leva muito trabalho. Além disso, achei
roupas que são a sua cara”
“Não acredito que procurou esse tempo todo”, respirei fundo e pus as mãos no colo.
Ela parou de juntar as ‘piranhas’ nas mãos e se virou para mim. Havia
um pente fino no bolso direito da calça e um secador preso na cintura.
“Bem”, prendia o cabelo em um rabo de cavalo com os olhos fixos nos
meus, “prometi que o ajudaria. Além disso, por mais orgulhoso que você
seja, tem que admitir que não tem chance”
“Olha”, suspirei ao erguer meu queixo, “obrigado, mas não. Só quero
falar com ela”, sacudi minha cabeça negativamente, “Acho que transformar
a aparência para ser notado...”
“Transformações”, ela pronunciou com tom de alerta, “não são apenas
para as pessoas serem notadas. Mas sim para terem uma boa visão de si
mesmas e uma boa auto-estima”
“Então, não preciso”, disse com simplicidade, dando-me de ombros,
“Não preciso de transformações para confiar em mim mesmo. Sei que o que
quero é só uma conversa, não...”
Bianca apenas inclinou a cabeça de um lado para o outro em descontração.
“O importante aqui é que vai precisar de mais para fazê-la sair
contigo, boboca”, só então percebi que a garota se localizava atrás de
mim com um pano que os cabeleireiros põem em seus clientes quando vão
cortar cabelos. Engoli em seco. “Além disso, que meninas vão se atentar
para um rapazinho com pontas duplas? Ser ruivo e ter sardas tudo bem,
mas...”
“Você não vai cortar meu cabelo além de um ‘pouquinho’”, quis saber, “vai?”
“Preocupado com sua mãe?”, ela me girou ao me encarar pelo espelho.
Não respondi. Ao invés disso, desviei meu olhar e senti um calor
familiar no meu corpo. Bianca ficou um tempo medindo os comprimentos das
mechas. “Posso cortar o suficiente para mantê-lo longo”, sorriu ao
balançá-lo. Dei-a uma careta de advertência. “Você cuida sozinho?”
“O que você acha?”, suspirei irônico ao me afundar naquela cadeira.
“É bem bonito ele”, estranhei, pelo espelho, vê-la contente enquanto
falava, “Se minhas irmãs o vissem...”, ajeitava as mechas com o cabo do
pente e as ‘piranhas’ de cabelo.
“Suas irmãs?”, tossi antes de perguntar, surpreso. Tentei imaginar garotas que parecessem com Bianca... Socorro. “Elas não são loucas por roupas, maquiagem e cabelo, são?”
“São”, a loira respondeu com inocência, “por quê?”
Resolvi não dizer o que se passava pela minha cabeça. E não protestei
mais. Apenas a espiei tratando dos meus cabelos no que pareceu uma
eternidade. Fui movido para o seu banheiro para lavá-los de um mousse
fedido de ervas especiais marinhas e depois para um hidratante
com um cheiro muito bom de morango que inibiu o odor antigo.
Durou uma
tarde toda ficar embaixo de ar-condicionado e ouvindo-a assobiar. Nesses
momentos, admirei as melodias. Pareciam harmônicas a ponto de me deixar
bastante calmo. Os peixes do aquário pareciam entrar em um transe de
‘paz e tranqüilidade’ quando ela cantava.
No dia seguinte, encontrei-me com a garota por quem havia me
apaixonado. Seu nome é Denise. Esperava-me com o livro perto dos olhos.
Encontrávamos no jardim na frente da escola, perto da estátua de um
marinheiro. Seu olhar estranhou que meu cabelo tivesse diminuído alguns
centímetros. E que eu tivesse uma franja e o resto do cabelo em uma
trança. Também achei desnecessário Bianca ter acrescentado um uma
pulseira de prata ou ter “revisto meus poros”. No entanto, eu ainda era
eu e assim mantive contato com a morena.
Nos primeiros encontros, conseguíamos manter. Entretanto, ela foi
gradualmente se afastando e apenas falava palavras curtas. Havia se
aproximado de um garoto de cabelos curtos que não gostava muito de ler,
mas que a chamava de vários apelidos carinhosos. Igor.
“Ainda me pergunto por que eu fui convidada”, resmungou
Bianca na festa do segundo casamento de meu pai. Trajava um elegante
vestido salmão e batucava suas unhas na mesa. Recusava a qualquer carne.
Mantivera-se com copos d’água. “Se vocês estavam tão distantes, por que
não a convidou ao invés de mim?”
Beberiquei o guaraná. “Sabe o que descobri?”
A loira me encarou. Escutávamos uma música de valsa e Bianca estivera
espiando cada casal que dançava na pista. “O quê?”, quis saber com um
pouco de raiva. Não sabia a razão de ela estar assim.
“Ela me via
somente como um amigo”, desabei. “Quando fui atrás dela para conversar,
acabei dizendo sobre como me sentia e... Olha só quem foi rejeitado?”
“Isso é triste”, repentinamente, a raiva dela se esvaiu. “Mais ainda
quando você ainda fala com ela”. Notei uma ponta de satisfação quando
ela disse isso. “Mas... por quê?”
“Sei lá”, ri sem a olhar, “é a primeira vez que me sinto próximo de alguém por anos”
Acho que pude realmente experimentar isso no que aconteceu naquele dia, a da peça da escola.
- E... Prontinho! - Bianca sorriu radiante. Ela me mostrou a parte de
trás do penteado. - Com essas roupas bufantes, esse cabelo nobre e... –
Riu maliciosa. - Esse bigode charmoso... Você parece mais adulto, milorde!
Revirei o olhar ao seguir o bolo de atores. Mas notei que ela ia à
direção contrária. Para a saída que a levaria ao pátio. A loira
sussurrava aflita no celular com cenho franzido com o pai.
- Onde vai? – Peguei em seu ombro. - A turma toda tá indo pra o outro lado.
- Fiz uma prova, lembra? Não preciso da peça para a nota. - Ela me
contou apreensiva e passou apressada os braços no meu pescoço.
Surpreendi-me com a rapidez. Entreolhamo-nos com gravidade e ela
apressadamente me deu um beijo na bochecha. - Tenho que ir. Desejo
felicidade para você, viu? - Falou ao me segurar minhas mãos, apertá-las
decidida com firmeza e ‘voar’ à porta dos fundos. – Adeus, sapo seco!
Eu ia a seguir para ter minhas respostas, mas o pessoal me parou para
avisar sobre a peça. Aquela foi a última vez que a vi. Depois disso, a
vida prosseguiu como ela não existisse mais naquela escola ou nessa
cidadezinha. No entanto, nunca esqueci o aperto quando olhei por cima do
ombro e vi espuma esparramada no chão.
FIM
QUER PARTICIPAR DO FEITO A MÃO? TEM ESPAÇO PRA VOCÊ! ENVIE SEU CONTO
PARA CONTATONRA@GMAIL.COM OU PUBLIQUE SEU DESENHO/POEMA NO NOSSO TUMBLR!
QUEM SABE NA PRÓXIMA SEMANA NÃO É VOCÊ RECEBENDO OS COMENTÁRIOS?
Olá, divulga pra mim? Estou começando...
ResponderExcluirhttp://ficeuodeioamileycyrus.blogspot.com.br
Obrigada!
Bjos
Ela é uma sereia!
ResponderExcluirGostei, Lucie...
:) Vaaaaaleeeeeeu, Alice ô/
ExcluirEu meio que tentei indicar através de alguns elementos da lenda da "Pequena Sereia". Meio que fiz o conto depois que fiquei maravilhada com Ponyo, que também é mais-ou-menos inspirado em A Pequena Sereia <3
Eu me sinto feliz por ter gostado :D
Adorei, Lucie! Acho que esse é, de tooodos os seus contos, o meu favorito! Incrível.
ResponderExcluirAwwwwww, obrigada Mel <3 Não sabe o quanto ver vocês aqui me deixa feliz <3 Vai vir maaaais contos meus por aí :| Aqui e no skoob -q
Excluirai que legaaaaal
ResponderExcluirque bom que gostou o/
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