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sábado, 19 de janeiro de 2013

[FEITO A MÃO] Como Antigamente

As mãos trêmulas e enrugadas que seguravam a carta não eram mais as de antigamente. Podiam ser as mesmas do passado; no entanto muito mais experientes, sofridas, delicadas e tristes.

O moreno sentou-se na poltrona azul marinho com dificuldade, aproveitando o prazer do momento – sempre gostara da efêmera expectativa que se tem ao lançar o corpo para trás, aguardando o encontro com o estofado. Aquele assento havia sido uma das primeiras peças que compraram para a casa, em meados de 2020. Ou seria 2019? Não... eles tinham começado a morar juntos em 2018, mas a casa só viria como presente de casamento, em 2023.. Sim... 23 de abril de 2023.  E como estava linda aquele dia, apesar do vestido gelo, creme, baunilha, que cor era aquela? Um branco que não é branco. Onde já se viu noiva de branco-que-não-é-branco? Ah... Ela nunca havia sido adepta de respeitar as cores propostas... Não... desde o réveillon de 2011/2012, que passara de laranja, contrariando todas as expectativas que a ocasião pedia. Por que não branco? “Minha pele já é muito clara, se eu vestir qualquer coisa branca, desaparecerei”,  costumava argumentar com um sorriso. Ela jamais desapareceria...  Ela era eterna... Onde estaria agora? Já havia dito seu nome várias vezes, mas sua mulher nunca mais atendera seu chamado...  Ela desaparecera. 


O papel amarelado, amassado, frágil, podre em suas mãos fez com que ele lembrasse o que estava para fazer. A carta... Guiou sua vista às letras irregulares, mas simplesmente não conseguia focalizar no que estava escrito. Seus olhos não eram mais os de antigamente.  Forçou, forçou as pálpebras, numa ultima tentativa de desvendar o emaranhado de palavras que compunham aquele manuscrito. Por que não dava certo? O que o impedia de enxergar? Levou uma mão ao rosto e ao tocá-lo, notou finalmente a ausência dos óculos de leitura.

Certo... os óculos... Tateou a mesinha ao lado, buscando encontrá-los, porém a imprecisão de seu toque o sabotava. Ao desistir, acidentalmente derrubou-os no chão.

Levou alguns segundos para compreender o ocorrido, e outros para conseguir se levantar, flexionar os joelhos e abaixar, alcançando o tão desejado objeto. Ah.. os joelhos rangiam como portas que já haviam sido fechadas demais.. E logo iniciou novamente o ritual de sentar-se. E ele estava tão cansado... Ela sempre dissera que ele seria um velho preguiçoso... Ele não era velho... Ele estava velho... “velho” é estado de espírito, não de idade. Ele era um velho velho.

Alisou o papel em sua coxa, antes de segurá-lo com toda a delicadeza possível. Tinha medo que seus dedos trêmulos o rasgassem sem querer. Aprumou o corpo na poltrona antes de iniciar a leitura da carta que já sabia de cor:
“Eu vou terminar com você. Não agora, temos bastante tempo até lá. A gente continuará namorando, vou te apoiar, torcer e lutar com você. Estarei ao seu lado nos melhores momentos da vida e também te ajudarei a superar os problemas que virão. Não deixarei de pensar em você por um segundo que seja. No final, vou terminar com você. Antes, é claro, vamos morar numa casinha linda, casaremos e eu sempre serei fiel e apaixonada. Só que preciso terminar com você, é muito importante que eu faça isso. A gente terá vários filhinhos que serão muito amados, e eles crescerão, estudarão e também vão conhecer alguém especial, com quem passarão o resto da vida. E não vejo outra opção, que não terminar com você.”
A sua frente, dezenas de porta retratos de filhos, netos e até Luizinho, o primeiro bisneto, que semana que vem completaria dois anos. Fotografias felizes que marcavam o passado.

Sua favorita era uma do casamento de Ana Sofia, a filha do meio, onde a noiva e sua irmã mais velha – que estava com o pequeno Manoel na barriga - posavam, sorrindo de orelha a orelha. Havia sido um dia tão feliz... Ela vestira branco, como todas as noivas devem fazer... O casamento numa capelinha do Morumbi... No mesmo lugar onde ele tinha se casado... Ah.. sua mulher estava linda... A noiva mais linda do mundo... Ela usara um vestido bege, creme, gelo, um branco-que-não-era-branco... Por que não um vestido branco? O que ela tinha contra um vestido branco? Nunca gostara de respeitar as cores que as ocasiões pediam... Passou um réveillon de laranja uma vez...
“ Vamos envelhecer juntos, rodeados por uma família maravilhosa, na vida que construímos com nossos sonhos e suor. Aí, um dia, seremos velhinhos fofinhos, daqueles que comovem as pessoas na rua por ainda se adorarem, mesmo depois de tantos anos. Uma hora você vai ficar mais velhinho ainda e morrer.”
Prosseguiu, sentindo o maldito choro se aproximar. Engoliu seco, antes de ler as duas últimas linhas.  
 "E eu morrerei junto. Como não posso viver sem você ao meu lado, vou terminar com você. Terminarei junto com você, meu amor.
Eu...

23/04/12”
As lágrimas escorriam incessantes por seu rosto de papel - amassado, fino, seco... Ele não era o mesmo de antigamente.

O moreno pouco a pouco se transformava na carta que lia repetidamente. Temeu, mais uma vez, remover o clips enferrujado que prendia ao papel uma foto – ainda estática e colorida, quem diria –, por medo que isso danificasse o material da mensagem já frágil pelo tempo. 

Optou por fim por erguer a carta de forma que pudesse ver o casal quando jovem, saudável, feliz, fértil... Como eles sorriam... Havia sido um namoro muito feliz, um casamento muito feliz... Ela vestira bege, creme, gelo... Laranja no réveillon...

Mentirosa. Traidora. Ela lhe enganara, iludira. Fizera promessas infundadas. Ela lhe deixará. Ela se fora. Há dois meses que sentia uma saudade profunda e não havia nada que pudesse fazer para trazê-la de volta... Ela terminara antes dele. Ela o abandonara. Como alguém que tantas vezes jurou amor eterno poderia realizar tal ato? Morrer sozinha?

Ah... mas eles iriam se encontrar novamente. Sim.. estava chegando o momento que ele tão ansiosamente aguardava. Eles em breve estariam juntos novamente, igualmente jovens, saudáveis, felizes, férteis... E ela estaria linda... com o vestido creme, gelo, bege de seu casamento... Ah, ela nunca gostara de seguir as cores que as ocasiões propunham... houve um ano em que passou o réveillon de laranja... Sua memória não era a mesma de antigamente.

O amor que sentia porque sua mulher, no entanto, jamais seria atenuado pelo tempo. Seria sempre o mesmo, o mesmo de antigamente. 

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6 comentários:

  1. ameii a historia! :)
    fikei impressionada...
    kiss :*

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  2. Ai siiis, que coisa linda <3 Eu já tinha lido a carta antes, e achei a coisa mais linda ever <3
    Chorei no final, tadinho :( E li ouvindo segredos, do frejar, achei que ficou super linds as duas coisas juntas.
    Sério, amei o conto, congrats *-*
    Beijinhos no seu coração, sis <3

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    Respostas
    1. Owm, sis, obrigada.
      A carta e o conto combinaram, né? E tadinho mesmo.. eu achei triste também.. fiquei meio assim no final, hahaha.
      Vou ouvir, não sei se sei que música é essa, hahaha.
      Beijo, sis lindona

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  3. Forte e emocionante.
    Gostei muito!!

    Beijos

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