Rafaela está cansada de viver na cidade grande, cansada de ficar enfurnada em seu pequeno apartamento. Mas, ao mesmo tempo, está acomodada demais para se aventurar e sair da torre na qual se trancou por tantos anos. Que lições o mundo lá fora poderá lhe ensinar?
Rapunzel Século 21
Pela
primeira vez, fitando o horizonte através de sua janela no quarto andar,
Rafaela notou como as luzes cintilantes dos carros e da cidade, que costumavam
encantá-la feito estrelas caídas na terra, assemelhavam-se muito mais a olhos.
Olhos felinos, selvagens, observantes; pontos iluminados a espreitar pelas
esquinas daquela selva de pedra. Não sabia dizer ao certo se eles a encaravam
furiosamente, ou ignoravam-na como se não existisse. Só sabia que as luzinhas a
irritavam.
Seu
brilho ofuscava as estrelas. Ao olhar para o alto, via um céu escuro e sem
luar. Em sua cidade natal, costumava identificar dezenas e dezenas de
constelações. Aqui, tinha sorte se visse um único pontinho cósmico naquela seda
negra. E enquanto acima era vácuo, ao
seu redor, via-se cercada por prédios que pareciam estender-se ao infinito -
tão altos que não podiam ter outro efeito, se não, torná-la ainda mais
diminuta.
Mudara-se
para a cidade grande aos dezesseis, com um sonho na cabeça e uma amiga em seu
braço direito. Agora tinha vinte e cinco, e o destino há muito levara ambos
embora. Namorado? Não tinha havia anos. Como, supostamente, deveria conhecer
alguém especial num lugar em que os cumprimentos eram trocados apenas por
obrigação e os sorrisos tomados com desconfiança?
Ela
tragou seu cigarro.
Vivera
naquele lugar por tanto tempo que ela mesma havia se tornado tão seca quanto
seu ar, tão dura quanto o asfalto das ruas e tão amarga quanto a água que saía
pelas torneiras. Aliás, torneiras, as suas, que funcionavam de um modo um tanto
quanto descontrolado.
A
da cozinha abria, mas só fechava se fosse girada, cuidadosamente, com a mão
direita, enquanto a esquerda empurrava o cano para cima. A do banheiro não
podia ser aberta, ou inundava o chão feito uma cascata, porque a pia havia
saído do lugar e não havia alma viva no mundo que conseguisse concertá-la.
Além
disso, ela morria de calor naquele cubículo maldito, mas não podia ligar o
ventilador, se não, a lâmpada da sala não acendia. Se abrisse a janela, aquela
única na qual se debruçava naquele momento, o pervertido do prédio da frente
insistia em tentar atrair sua atenção jogando um laser por qualquer fresta.
Deu
um último no cigarro – o mau hábito também só viera recentemente - apagou-o no
parapeito e fechou as persianas, antes que o “dito-cujo” notasse que ela estava
lá.
Suspirou.
Andou.
Jogou-se
no sofá.
Andava
de saco cheio. Era esse, e não o apartamento, o problema-mor. De saco cheio, muito
cheio daquele lugar. Perguntava-se por quanto tempo ficava enclausurada no
cubículo, em sua rotina que ser resumia a nada mais que casa-trabalho-casa.
Não
tinha vontade de sair - não achava que valia à pena colocar os pés num mundo
tão cinza, povoado por pessoas tão medíocres. E ao mesmo tempo, não queria mais ficar entre quatro paredes. O
apartamento era sua casa, mas, em certas horas, parecia ser uma prisão.
Lembrava-se
do quanto aquele lugarzinho significava para ela no começo: era a liberdade, era
o sonho, e era a independência... Até que um dia já não era mais.
Passava
das nove da noite, quando seus olhos pousaram na mochila sobre a mesinha no
meio da sala. Uma mala pronta, jogada ali havia uns dias, desde que voltara de
um fim de semana na casa uma amiga.
Levantou-se
do sofá. Andou até ela. Deixou que os dedos roçassem a alça.
E
num ímpeto de decisão que surpreendeu até a ela mesma, Rafaela arrancou a
mochila da mesa, colocou-a sobre os ombros e partiu, seguindo seu coração, sem
destino definido.
Quer
dizer, com destino mais ou menos definido. Ia para a rodoviária, primeiro. Aí
lá, lá sim, deixaria mandar os instintos de suas entranhas. Pegaria um ônibus
de volta para sua cidadezinha, que não visitava havia quase dois anos, ou talvez
para outra cidadela qualquer. A regra era: quanto menos concreto e mais
sorrisos, melhor.
Rafaela
continuou andando até que os prédios tornaram-se mais baixos, mais escassos e
mais afastados. As imponentes construções habitacionais, aos poucos viravam
comércio.
Já
longe do centro da cidade, viu o mundo com outros olhos. Até mesmo o céu
parecia outro. Ela notou que, naquela noite, ele não estava preto, nem mesmo
azul escuro como parecia ao ser visto pela janela. Mas irradiava tons de
vermelho, que fizeram-na pensar que, talvez, teria sido uma melhor ideia levar
uma sombrinha e blusas de frio extras.
Na
verdade, a melhor ideia mesmo teria sido não pegar uma mochila com muda de
roupa para dois dias apenas, que ainda por cima estavam podres de sujas.
Mas
estava feliz que, ao menos, o canivete estava na mochila.
O
canivete?!
Sim,
o canivete. Andava com um na bolsa desde que sofrera o seu segundo furto. Nunca
chegara a usá-lo. Tentara, no terceiro furto, mas deixou-o cair no chão com o
nervosismo e, ao abaixar-se para pegá-lo, criou a deixa perfeita para que
levassem sua bolsa. Mas mesmo não
sabendo usá-lo e considerando que era uma noite de sexta-feira e as ruas
estivessem, relativamente, movimentadas, sentia-se mais segura com ele.
E,
segura, ela chegou à rodoviária. Passou pela porta e seguiu em linha reta para
o primeiro balcão no qual seus olhos pousaram. Deixava que seus pés a guiassem
mais do que seu cérebro.
Havia
três pessoas na fila. Parou atrás de uma mulher, de cerca de quarenta anos, que
segurava três malas quase do seu tamanho. Espiou, por cima de seu ombro, os
destinos da viação. E deve tê-lo feito de um modo um tanto indiscreto, já que a
mulher virou para trás e, para a surpresa de Rafaela, sorriu.
—
Viagem para a praia?
Rafaela
deu ombros.
—
Para qualquer lugar, na verdade. Preciso dar um tempo dessa cidade.
—
Mora aqui há muitos anos?
—
Nove. Você?
—
Desde sempre.
—
E não se cansa desse lugar e dessas pessoas? — Rafaela fez careta de quem
chupou limão. — Não tem vontade de se mudar daqui?
—
Ah, não! — a mulher balançou a cabeça. —
Eu amo aqui — o sorriso dela se alargou. — É claro que tem algumas pessoas que
desestimulam a viver em cidades grandes, mas pra mim, a maioria dessas não vive aqui de verdade. Só existem, e não
fazem muita coisa além de reclamar. Nunca devem ter ido a um ponto turístico, a
uma apresentação cultural, ou tomar um café numa livraria. Somos nós que
fazemos o lugar, não?
Rafaela
sentiu seus olhos baixarem ao chão.
Que
tipo de frase porcaria era aquela? A expressão em seu rosto era de quem sentia
algum tipo de azia. Saíra do apartamento para escapar um pouco, e agora parecia
ter levado um tapa na cara.
—
Com licença — disse à mulher.
Caminhou
lentamente até a saída da rodoviária. E depois mais rápido ao chegar à rua. Rápido, no ritmo das pessoas à sua volta. Pessoas que sorriam, andavam em bandos, gente
feliz com o fim de semana que chegava.
Talvez,
Rafaela pensou, ela fosse mesmo o problema. Como era mesmo que diziam? Se vai
andar na chuva, é para se molhar. E o que ela vinha fazendo era tentado se
esconder sob as marquises. Era ela quem não se encaixava. Ela estava errada,
não o lugar. Deixara-se engolir pela rotina. Tornara-se tão amargurada como aqueles que
costumava criticar.
E agora a beleza da cidade voltava a tomar-lhe aos olhos. Gostava
das luzes, de novo. E das risadas, das músicas de todas as cores que tocavam a
cada esquina. Samba daqui, axé dali, e um bom rock numa certa boate, porque
isso não podia faltar. Gostava do cheiro das comidinhas botecos, das pipocas
dos cinemas, cheiro de shopping – sim, para ela shopping tinha um
cheiro próprio - e dos perfumes das moças e rapazes arrumados para sair.
Continuava não gostando do ranger de motores das motos, das sirenes de
ambulância e policiais, ou do cheiro dos sacos enormes de lixo amontoados numa
ou outra esquina. Não era uma cidade perfeita, é claro. Mas era como uma música
agitada: embora cansativa, quando só escuta, pode ser divertida, se está disposta
a dançar junto.
Rafaela
chegou de volta ao prédio do qual saíra. Por algum instinto natural recém-adquirido,
ela sorriu para o porteiro. Sorriu de verdade, como se estivesse genuinamente
agradecida por ter um porteiro tão legal. E o homem lhe sorriu de volta e
acenou com a cabeça.
Passou
direto pelo elevador, coisa que raramente faria. Se podia evitar silêncios incômodos e desconforto auto infligido,
ela o faria. Subiu correndo as escadas.
Entrou
no apartamento. Fechou a porta, com todas as trancas, mas abriu uma fresta na
janela. E deixou-a assim pela noite, para
deixar entrar o Sol ao amanhecer e para que o mundo lá fora não se esquecesse
de chama-la para visitar.
FIM
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Achei lindo, Ray.
ResponderExcluirFicou sensível e muito realista, considerando que muito mais pessoas existem do que vivem.
Amei o título e a descrição da cidade, tudo tão poético!
Alegrou minha manhã!
Beijos,
Mel
Que texto bacana, Ray. É assim mesmo: "somos nós que fazemos o lugar onde moramos". Quando sentimos que aquele lugar nos acolhe, nos abriga, nos ama, é sempre muito bom! Olhamos com outros olhos, com uma perspectiva totalmente diferente - e positiva.
ResponderExcluirVocê escreve muito bem! :D
Beijinhos!
O que poderia desenhar sobre o texto
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