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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

[ACONTECEU NO HALLOWEEN] Conto para a Morte (3º Lugar)

Como dito no regulamento do concurso cultural, aqui estamos começando com a postagem dos três textos vencedores! E para poder deixar vocês no aguardo de qual é o conto que ficou com o primeiro lugar, de acordo com o parecer de nossos jurados e com a contagem de votos (e aproveitando para agradecer a todos que participaram: afinal, não vai ser o último concurso que faremos aqui no blog e nenhum acontece sem vocês!), começaremos em 'ordem decrescente' do ranking.

Agora, vamos dar uma espiadinha no texto do terceiro colocado: CONTO PARA A MORTE, de Poliana Lima!




CONTO PARA A MORTE
AUTORA: POLIANA LIMA
TERCEIRO LUGAR NO CONCURSO CULTURAL 'ACONTECEU NO HALLOWEEN'

Eu morri no Halloween daquele ano, você sabe. Não imaginava desse jeito, achei que seria quando eu fosse velhinha, na minha cama, enquanto dormia. Muita gente quer morrer assim, sem saber que chegou sua hora de sair do mundo dos vivos e partir para a próxima etapa. Mas e o que tem depois? Um paraíso? Um inferno? Limbo? Um mundo feito de sorvete com unicórnios e nuvens de algodão doce? Bom, não. É basicamente o nada e ao mesmo tempo o tudo, assim vejo.
Eu sinto, mas não muito. Vago pelas ruas e não me importo de não ser percebida, sei do meu passado, mas a saudade não me contempla. Não sinto falta dos meus pais, da minha irmã mais nova e nem dos meus dois cachorros. Lembro-me de ter um quarto cheio de almofadas em cima de um tapete em que passava a maior parte do tempo, mas mesmo assim é como uma vaga lembrança. Você deveria ter dito mais para mim assim que chegou.
Não te achei horripilante nem nada, de aparência é uma jovem mulher usando um vestido cinza de seda, tem um sorriso encantador e um rosto comum. Algo que eu nunca imaginei. Lembro com carinho quando segurou minha mão, sussurrando:
- Vamos, Gisela.
Só isso. Você me chamou e eu não senti mais medo, nem fiquei chateada, sabia que era confiável. Então enquanto caminhávamos contava que agora eu não poderia mais falar com os vivos e muito menos iria querer voltar, eu não sofreria como eles e precisava andar pela Terra até encontrar o local.
- Mas que local? – Eu perguntei calmamente.
- Sua casa. – Você disse com um sorriso reconfortante.
Eu me perguntei se seria minha antiga casa na Rua das Rosas, mas não era ela. Não era minha verdadeira casa agora, era apenas dos meus pais e da minha irmã. Antes de ir embora você me abraçou e explicou que inveja, saudade, ansiedade, assim como outros sentimentos e comportamentos não fariam mais parte de mim. Eu não tinha feito nada de mal enquanto viva; meu espírito, alma, o que fosse, não estava sombrio, e que meu caminho seria sem grandes movimentações.
Desde daquele dia, eu não vi mais você e nem senti falta.
Enquanto caminhava pela terra em busca da minha nova casa conheci outras pessoas que tinham morrido, algumas bem simpáticas, outras tão perturbadas que não conseguiam nem manter uma conversa, outras que tinham tanto conhecimento acumulado que poderiam contar sobre os outros lugares e direções sem problemas. Encontrei também alguns animais, uns ainda seguiam seus donos, outros gostavam mais da companhia dos mortos e uns poucos ficavam por ai junto com seus antigos colegas.
Gostava de observar os lugares e apreciar o pôr-do-sol que acontecia tantas vezes sem perder a beleza. Agradeci por não me entediar fácil e adorei poder sair por ai correndo e gritando sem ninguém se sentir incomodado. Só que eu era incomodada. Pessoas com rostos cansados e estressados, além dos crimes que presenciei. Queria poder fazer algo, mas não conseguia. Porém, sempre que a angústia começava, ela parava depois. Eu soube que aquelas pessoas que faziam coisas muito ruins iriam sofrer tanto quanto suas vítimas sofreram. Você sabe. Esses tipos de espíritos, eu vou chamar assim por que alma parece ser algo vivo, eu quase nunca os vi. Os poucos que cheguei perto ficavam em cantos de paredes ou em locais abandonados, quase nunca se mexiam e pareciam imersos em algo tão aterrorizante que seus rostos só tinham uma expressão.
De qualquer forma, enquanto caminhava pelas ruas da Holanda conheci uma garota que tinha quase a mesma idade que eu quando morri: Lindalva. Ela tinha uma personalidade muito boa, gostava de conversar e me mostrar os pontos turísticos.
- É tão bom poder ir nesses lugares e ver flores bonitas. – Ela dizia animada, enquanto corria de um lado para o outro. – Pena que nossas emoções não são tão intensificadas quanto às deles.
Nossas emoções eram apenas um registro vago do que era quando vivos, mas não sumiam por completo. Também não sentíamos fome, frio ou calor. Era bom por que continuávamos com a mesma roupa de sempre, a nossa favorita. A minha era uma regata verde e uma saia branca longa com estampa de flores. Não usava sapatos por que sempre preferi andar descalça. Lindalva usava calças jeans, uma blusa do Oasis e sapatos de salto rosas.
Andamos por muitos lugares e até conversamos com outros mortos. Uma mulher que antes tinha sido uma grande cientista ficava perto de uma árvore em uma praça, ela podia falar sobre processos químicos com propriedade e fazia cálculos e mais cálculos mentais.
- Vocês não acham que estão demorando muito? – A mulher que se chama Mary perguntou em um dos dias quentes do verão, enquanto observávamos famílias tomando sorvete. – A casa de vocês.
- Você também não está? – Eu perguntei com dúvida. Mary sorriu.
- Claro que não, eu já achei minha casa. – Mary respondeu apontando para um prédio do outro lado. – O apartamento do segundo andar.
- Por que tu não foste para lá ainda? – Lindalva perguntou.
- Eu estou esperando os novos donos. Ainda não é a hora.
A hora. Eu tinha ouvido falar dela algumas vezes e você não me disse dela. Todos poderiam encontrar suas casas, mas não podiam ficar nela até a hora chegar.
- Queria que a Morte tivesse explicado isso melhor. – Desabafei esfregando os pés na grama. – Ela falou tão pouco.
- Claro que ela falou pouco, a Morte não ia deixar de ser um mistério. Ela adora ser inconstante e desconhecida, deve ter sido bem legal com vocês. Ela tirou sarro da minha cara. – Mary deu uma risada, seus cabelos cacheados caíram no rosto com os movimentos. Fiquei imaginando o que você disse para ela. – Quem diria que tinha alguma coisa depois. Ainda somos matéria, mas não igual a dos vivos.
- Quer dizer...?
- Quer dizer, Linda, que ainda existimos, mas do nosso jeito.
Nós três criamos algumas teorias do que poderia ser. Também discutimos a existência de Deus e outras coisas, Lindalva acreditava que existia o Criador, eu não poderia dizer o mesmo, enquanto Mary disse que só tinha certeza da sua existência e de nós. Era bom sentar e conversar sobre vários assuntos sem precisar se incomodar de discutir ou mesmo ofender os outros pelas suas crenças. Me peguei imaginando se o que vivia era o Paraíso, mas não era.
Então o Halloween chegou de novo. O mundo todo se transformava mesmo em países que não tinham costumes ligados a data. O dia 31 de outubro era mesmo o dia em que as duas realidades ficavam mais próximas uma da outra. Eu podia tocar as pessoas e movimentar seus pertences.
Linda disse que foi um trabalho seu esse dia, Morte.
- O que tu acha de assustar algumas crianças birrentas? – Lindalva perguntou quando decidimos ir a uma vila dos Estados Unidos. – Poucos lugares do Brasil fazem essas festinhas, uma pena.
- Isso não é errado? Digo, não é a nossa função fazer isso. – Eu falei.
Chegamos muito rápido na vila, o tempo e espaço eram diferentes dos vivos. O lugar era de pessoas de classe boa com vários enfeites nas casas bonitas e as primeiras crianças fantasiadas saíam de casa correndo por ai.
- Não é. Também podemos expulsar esses espíritos ruins de casas habitadas, conheci um antigo presidiário preso injustamente que fez isso muitas vezes, o Klian. Ele não sentia raiva pelo que tinha acontecido com ele, mas continuou com o ódio da sua vida pelas pessoas que praticavam crimes.
- E o que aconteceu? – Perguntei quando sentamos na calçada em frente a uma casa exageradamente enfeitada com esqueletos e abóboras.
- Encontrou sua casa e depois que o tempo passou, renasceu.
Ficamos um tempo esperando até aumentar o movimento de pessoas, duas crianças fantasiadas de pirata e Batman ficaram paradas para nos observar e, assustadas, saíram correndo. Lindalva deu uma risada, se divertindo.
- Bem sensíveis, elas. Vão ter lembranças da gente, mas não se preocupe, não vão ficar traumatizas.
- Por que elas ficaram assustadas? Nós parecemos duas adolescentes comuns sentadas na calçada.
- Ah, elas não veem isso. Tu não pareces essa versão adorável de cabelos curtos vermelhos e olhos grandes, é mais um ser sem olhos e careca com a pele quase transparente. Nossa realidade com a deles pode estar bem mais próxima, mas é distorcida.
Pisquei algumas vezes e refleti um pouco.
- Eu ficaria traumatizada se visse isso.
Lindalva riu mais alto dessa vez.
- Somos apenas dois fantasmas comuns, sentadas na calçada batendo um papo. Se a gente começasse a persegui-las gritando, isso sim seria trauma, principalmente se fossem crianças ou adultos malcriados.
- Entendo. – Respondi. – Então, quando vamos nos divertir?
Podia parecer maldade se divertir assustando os outros, mas não ficava muito tempo com remorso, principalmente dos pré-adolescentes que batiam em crianças para roubar doces. Assoprei no ouvido de um e sussurrei “o diabo está te esperando” perto de outro. Lindalva fez dois deles tropeçarem, derrubei a sacola de outro e pisei nos chocolates. Ela ria enquanto fazia isso, eu não ri muito por que estava mais preocupada acenando para os poucos bebês que apareciam com seus pais nas ruas.
- Bebês são os mais sensíveis, eles não sabem dividir o que está na realidade deles e da nossa. Também não nos veem deformadas. Adoráveis, não é?
Concordei e partimos para “assombrar” uma casa. Derrubamos algumas telhas e jogamos terra em alguns cantos, também arranhamos espelhos antigos e chutamos algumas canelas. Comentei com Lindalva que aquilo parecia exagerado, mesmo que depois a gente não se sentisse culpadas.
- Acredite, a vida vai assustá-los mais do que a gente. – Ela comentou.
Sentamos na mesma calçada de antes e ficamos em silêncio enquanto as últimas crianças começavam a voltar para casa. Alguma coisa doeu no meu peito onde deveria ficar o coração e também bem no meio da minha cabeça.
- Eu morri em um dia assim. – Falei por fim, sem comentar da dor.
- Foi muito ruim? – Lindalva perguntou.
- Um pouco... Um carro bateu em mim e eu fiquei bem machucada. - Disse em um suspiro. A dor não passava. Eu não deveria sentir dor, não é?
- É uma morte bem terrível para a família... - Ela disse catando algumas pedrinhas e jogando do outro lado da rua. – Eu levei dois tiros depois que alguns assaltantes invadiram minha casa. Minha família toda morreu. Cheguei a ver meus pais um mês depois. Foi bem estranho.
- Estranho como?
- Não pareciam meus pais, eu os vi mais como dois antigos amigos distantes.
O silêncio voltou e a minha dor continuava. Aquilo só podia significar uma coisa.
- Lindalva. – Disse baixo com a mão na cabeça. – Eu... Eu preciso ir.
Minha amiga fantasma sorriu compreensiva e me abraçou. Ficamos algum tempo assim, até que desfizemos o abraço.
- Minha hora chegou. – Disse por fim, com algumas lágrimas nos olhos. Não sabia que podia chorar de verdade, aquilo não tinha acontecido antes.
- Eu sei, eu sei. – Ela respondeu esfregando meu ombro. – Tu vai se sair bem.
- Obrigada. – Levantei da calçada e limpei a saia, mesmo que não tivesse nenhuma sujeira, apenas por hábitos antigos. – Tenho um Pacífico para atravessar. Adeus, Lindalva.
- Até logo, Gisela. - Escutei ela responder enquanto dava as costas e mesmo com a dor na cabeça e no coração, eu senti outro tipo de dor. A dor da saudade, e as lágrimas aumentaram.
Não era possível, eu não deveria sentir saudade! Mas só entendi mesmo quando cheguei a uma casa em Taiwan. Era bonita, mas com um ar bem terrível. Em um dos quartos um garotinho assustado tinha pesadelos por causa de um espírito ruim no canto perto do guarda-roupa. Estreitei os olhos e abaixei a voz.
- Se você não sair daqui agora, arranco seus olhos e sua língua com minhas unhas, maldito. – O espírito ruim fez um som grotesco e desapareceu.
Voltei o rosto para o garotinho e passei as mãos nos seus cabelos. A saudade desapareceu.
- Não se preocupe, vou proteger você deles, Nai Long.
O garotinho se acalmou e voltou aos sonhos comuns.

Ele se tornou a pessoa mais importante da minha nova existência.

Obrigada, Morte.

FIM
Os próximos textos serão postados dia 05 e dia 06, cada um. Então, caso você também esteja interessado em verificar o segundo lugar e o primeiro lugar, não perca!
E não deixe de dar sua opinião sobre o texto postado hoje também!
Obrigado à sua participação, Poliana, e parabéns ;)

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