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sábado, 28 de dezembro de 2013

[FEITO À MÃO] Surpresa de Ano-Novo

São 22:45 do último dia do ano. Estou enrolada na toalha, com os cabelos molhados, recém saída do banho, quando abro a porta do quarto e me deparo com aquilo.
Isso não pode estar acontecendo.
Eu me recuso a aceitar que isso esteja acontecendo comigo justamente hoje.

- FRED, SAI DE CIMA DESSA CAMA AGORA!
Fred, o Beagle cara de pau e atrevido, olha pra mim ainda com o tecido do que costumava ser o meu vestido pendendo de sua boca cheia de baba. Ele está deitado na minha cama, cercado pelo que um dia eu quis que fosse o meu traje de Reveillón, mas que agora não passa de uma lembrança - não há nada que não esteja babado, mordido ou destruído. E, a despeito do meu grito, ele não se mexe.
- CACHORRO MALVADO! - eu berro, tão irada que acredito que, se fosse menos sensível à dor alheia, eu poderia estapear aquela cara peluda agora mesmo. Fred cospe meu vestido e desce rapidamente da cama, saindo pela porta do quarto como se nada de mais estivesse acontecendo.
- O que foi, Maura? Por que você está gritando desse jeito? - ouço Tom perguntar lá da sala. Provavelmente ele está fazendo carinho na cabeça do cachorro enquanto eu me descabelo.
- O seu cachorro destruiu a minha roupa pra festa!
- Não deve ter sido tão feio assim! - ouço seus passos, e, em segundos, ele está no quarto. Para logo depois de entrar, boquiaberto, encarando os restos de tecido.
- Retiro o que disse. - ele fala - Cachorro malvado!
- O que eu vou fazer agora? - pergunto, já à beira de chorar.
- Põe outra roupa, amor!
- Mas eu não tenho nenhuma outra roupa nova. Ano Novo a gente passa com roupas novas, senão dá azar!
- Isso é crendice! O que importa é você ficar linda nos próximos... - ele consulta o relógio - vinte e cinco minutos. Estou te esperando.
Ele sai e bate a porta, e fico sozinha com o meu desespero. Vinte e cinco minutos. É uma ótima hora pra acontecer um milagre.
Abro o armário e analiso as opções, me sentindo cada vez mais desesperada. Não é só porque o vestido era novo, e supostamente isso deveria me trazer sorte. É porque tinha sido escolhido, especialmente escolhido - não por mim, mas por ela. Minha sogra. Na nossa primeira "tarde de compras", ela tinha encontrado o vestido numa loja, me feito prová-lo e disse:
- Você devia usá-lo na nossa festa de Reveillón.
Foi um ultimato. Tudo é um ultimato com ela.
E agora está arruinado.
Analiso cada roupa, tentando me lembrar de algum comentário que ela tenha feito que possa me ajudar na escolha. Não preciso agradar Tom - sei que ele vai amar o que quer que eu coloque, especialmente se me arrumar rápido - mas a mãe dele é outra história. Eu e ele estamos juntos há quatro anos, e casados há um ano, e ela nunca, nunquinha mesmo, me disse uma palavra de aprovação além daquela pequena frase sobre o vestido. E hoje, especialmente hoje, eu preciso que ela me aprove. Se ela não me aprovar depois de hoje, minha vida será um inferno.
Não há tempo pra pensar, então pego a primeira roupa bonita que encontro e me visto. Tento juntar no meu corpo a maior quantidade de mimos que juntei dela ao longo dos anos - a gargantilha que ela e meu sogro me deram de aniversário após o primeiro ano de namoro, os sapatos que, segundo Tom, ela o ajudou a escolher pra me presentear no Dia dos Namorados, o anel que era dela e que Tom me deu quando me pediu em casamento. Não me sinto perfeitamente segura sem o maldito vestido, mas vou ter que me dar por satisfeita. Melhor do que nada.
Checo na bolsa pra ver se o papel está lá, e então vou ao encontro do meu marido. Ele e Fred estão na sala, assistindo um programa qualquer enquanto esperam. Nem meu descontentamento com o cachorro me impede de sorrir para Tom. Pego a travessa de pavê na geladeira, e saímos.
- Desfaz essa cara. - ele me diz, logo nos primeiros minutos dentro do carro. Eu solto um longo suspiro.
- Estou tentando.
- Era só um vestido.
- Um vestido que a sua mãe escolheu! E que o seu cachorro destruiu!
- Não vem com o seu cachorro, não, porque ele é seu também! Nós dois adotamos o Fred!
Concordo, calada, mais por culpa que por submissão. Fred era um bom cachorro, apesar de ser destrambelhado e claramente maior do que o espaço do apartamento era capaz de suportar. Vamos pegar um gato, eu tinha dito, quando Tom chegou com a ideia de adotarmos um bichinho pra colorir nossa nova casa. Mas do momento em que descobriu os filhotes de Beagle abandonados num bairro próximo ao seu trabalho, ele já estava decidido. E quando Fred chegou, foi amor à primeira vista. Ele podia comer minhas coisas, mas eu ainda o amo.
Fred e Tom são bastante parecidos, se eu parar pra pensar. Enfim.
Chegamos ao condomínio fechado onde moram meus sogros, e meu estômago já começa a se agitar. Independente das circunstâncias, sei a causa real do enjoo - está chegando a hora. Estacionamos, descemos do carro e pegamos o elevador rumo à cobertura onde uma festa grande e estilosa já está há todo vapor - afinal, já passa das 23h. No momento em que as portas do elevador se abrem e Tom escancara a porta do apartamento para me deixar entrar, me sinto boba demais com meu traje improvisado, meu cabelo mal arrumado e o maldito pavê que, tenho certeza, ninguém vai provar. Tem muita gente ali, e comida e bebida encomendada pra estufar o prédio inteiro. O que eu estava pensando?
Dou o primeiro passo, inadvertidamente com o pé esquerdo.
Quando vou dar o segundo, piso em falso num pequeno degrau logo na entrada. Tom me segura pelo braço para que eu não caia. Mas eu não consigo segurar a travessa de pavê, que decola das minhas mãos e se espatifa com estrondo no chão.
A festa para - cada um dos convidados requintados de novela das oito me encarando. Sinto o julgamento como se fossem pedras sendo atiradas na minha direção. Abaixo a cabeça, nervosa a ponto de chorar.
- Você se machucou? - Tom me pergunta, e balanço a cabeça. Meu ego ferido dificilmente serviria de resposta.
Logo aparece alguém pra limpar a bagunça, e, após os olhares dispersarem, aparecem meus sogros. Ela, uma mulher elegante, alta, austera, dona de si o suficiente para deixar os cabelos crescerem grisalhos e usá-los com orgulho e beleza. Ele, um tipo estranho, franzino, careca e de poucas palavras. Nenhum dos dois se parece com Tom, e nenhum dos dois tem nada a ver comigo. Às vezes é difícil entender como nasceu essa união de pólos tão opostos.
Eles não dizem nada além de boa noite, mas consigo ver, na inexpressividade dela, que está me avaliando. Uma parte de mim se maltrata imaginando o que está passando pela cabeça da minha sogra neste momento. "Que moça desastrada", com certeza. "Como meu filho se casou com ela?" também é uma possibilidade bem plausível. "Onde está o vestido que eu a mandei usar?", é claro.
Eu preciso parar com isso.
Um garçom passa (um garçom. Numa festa de Reveillón em um apartamento. Cristo!) com vinho, que Tom aceita prontamente. Eu recuso, embora esteja morrendo de vontade. Peço um refrigerante, e isso é tudo o que pretendo beber hoje.
Circulo com Tom pela casa, e cumprimento uma dezena de pessoas cujos rostos e nomes eu deveria, mas não consigo me lembrar. Mais da metade dos convidados é gente muito mais velha do que eu - amigos dos meus sogros cujos filhos estão passando o Ano Novo nas Bahamas ou em algum outro lugar de nome chique, e que compartilham da companhia de outros casais quase idosos e de nível social alto pra não passarem a virada do ano sozinhos em casa com uma garrafa de champanhe caro. Eu já estou cansada das conversas educadas dez minutos depois de chegarmos.
Mas aquela é a família dele, e o mundo dele, e eu sabia no que estava me metendo quando começamos a sair. Eu já tinha exigido muito de Tom, e agora é a minha vez de retribuir. Amar é ceder. Ele se embrenhou nos churrascos de fundo de quintal da minha família, na cerveja barata, na vodca de quinta categoria, nos tios bêbados que saiam na porrada todo fim de ano. Tom aprendeu a conviver no meu mundinho de classe média, e agora que estamos casados, espera que eu desse uma chance ao mundo em que ele cresceu. Eu posso sobreviver a isso.
O grito de "cinco minutos" ecoa quando alguma pessoa animada checa o relógio. Sinto um frio na barriga, e coloco a mão sobre ela de maneira quase involuntária. Tiro assim que percebo o gesto. Tom não reparou em nada.
- Não tem nada pra comer? - reclamo, baixinho, e Tom ri de mim - Só vi bebidas até agora.
- Tem uma mesa com canapés lá na frente. - ele me indica a direção, e eu vejo uma mesa com uma porção de comidas hostis exibidas quase como que numa obra de arte. Suspiro e vou até lá.
Nada parece saudável ou digno de atenção, mas estou com muita fome. Pra alguém da alta, tenho certeza, aquelas coisas parecem bonita e apetitosas, mas eu daria todos aqueles canapés finos por um prato de arroz com lentilha, um pedaço de pernil, um pouco do cuscus que a minha avó prepara tão bem. Pego um minúsculo canapé, hesitante, e provo.
É horrível.
Pego um guardanapo pra cuspir aquela mistura nojenta fora, e é quando vejo minha sogra bem ao meu lado. Disfarço que estou limpando alguma coisa e engulo a coisa toda sem mastigar.
- Está gostando da festa? - ela me pergunta, com aquele jeito dela de sempre fazer com que seu tom pareça suspeito. Tento sorrir.
- Sim. Está incrível. - respondo, por falta de criatividade. Ela parece engolir minha resposta tão bem quanto eu engoli o canapé.
- Onde sua família está passando o Reveillón?
- Eles foram pra casa dos meus tios na Praia Grande.
Ela assente, e pela sua expressão acho que está tentando determinar se "Praia Grande" é alguma das praias fabulosas do Caribe que ela visitou no ano passado. Por fim, ela acaba desistindo e vai pra outro assunto:
- O que houve com o vestido?
Meu rosto pega fogo. Achei que ela seria delicada o bastante para não perguntar. Não consigo nem olhar pra ela ao responder:
- O nosso... cachorro... comeu.
Não tem outra palavra pra descrever o seu olhar, que não desgosto.
- É uma pena. Ele caía muito bem em você.
Não digo mais nada, e graças a Deus sou salva pela contagem regressiva. Tom nos encontra, e sorri com animação, a despeito daquele clima visivelmente desagradável.
- Cinco!
Seguro a mão dele com força.
- Quatro!
Abaixo o copo que estou segurando, ainda com um resto de refrigerante, e o deixo em cima da mesa dos canapés.
- Três!
Abro a bolsa. Pego o papel.
- Dois!
Amasso-o nas mãos sem querer, a garganta já fechada de ansiedade.
- Um!
Os fogos explodem. Todos os convidados aplaudem, e gritam em felicitações. Tom abraça a mãe, e então se volta para mim. Ele vem me abraçar, mas eu o paro.
- Esse é o nosso último Ano Novo a dois. - digo pra ele, com um sorriso nervoso.
Ele não entende, a princípio. Pega o papel que estendo em sua direção, e o encara com a expressão confusa por dois segundos, antes de me olhar no mais completo êxtase.
- Eu vou ser pai? - ele grita, e começo a chorar enquanto concordo, muda - EU VOU SER PAI!
Enquanto ele me abraça, minha sogra pega o teste de gravidez das mãos do filho. Sou erguida do chão com tanta força que perco o ar por um momento, mas não consigo me importar. Guardei esse segredo por dez longos dias. Guardei esse desejo desde o momento em que eu o conheci.
Tom me solta, e vejo que está chorando tanto quanto eu. Sou então surpreendida quando minha sogra me abraça com força e ouço um curto soluço.
- Muito obrigada, minha querida! - ela me solta e, com um sorriso que nunca antes a vi usar, completa - Eu sempre soube que ele tinha escolhido a moça certa.

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