Um conto com situações no Natal e em um futuro distante, foca-se na percepção de uma garota no que parece ser seus últimos momentos.
CORDEIRINHO DE METAL
Estou com medo. Minhas
impressões me deixam inquieta. Por que aqui está tão escuro? Eu deveria ser
capaz de ver mesmo na escuridão, então será que eles tiraram meus...?
— Não sei como
isto conseguiu enganar tão bem. — começou uma voz de adulto.
Há um cheiro de algo
parecido com petróleo, com óleo... Só que um cheiro forte, misturado com o de
fuligem e algo mais... A voz ecoa pelo lugar, como as paredes fossem a prova de
som. Também não me recordo de ter ouvido essa voz e nem que algum lugar
conhecido de minha casa tenha paredes assim...
Abro minha boca para
tentar falar, mas só então a noto destruída e ainda tento mexer o que parece
ser seus restos: tudo que consigo são sons metálicos, tipo ‘tic’ e ‘tec’, e
nenhum movimento das minhas cordas vocais. Como parei aqui?
Lembro que já tinha
gritado o bastante antes na primeira vez que me dei conta de que não estava
mais em meu lar. Minha família, meu pai e minha mãe, estavam preparando uma
ceia para comemorarmos juntos o dia em que uma pessoa chamada Jesus Cristo
nasceu: ele, papai, não era cristão, mas ela era e eu não fazia ideia (e ainda
nem faço) se sou. A última imagem que tenho deles é ela me pondo para desligar,
avisando-me que chegariam seus parentes e que eu ainda seria ligada para poder
passar a meia-noite com eles. Também me recordo que me deitava na cama e que
concordava, embora esperasse uma visita.
É algo que acontece
algumas vezes por ano desde o Natal passado. Neste, lembro-me de sentar perto da
árvore que meus pais montavam e observar aquelas luzinhas coloridas piscando.
Olhando-as, eu pensava o quanto pareciam bonitas. O aparelho entoava uma música
agradável, embora bem antiga, e algumas vezes chegava a chiar. Aquela cena me
fazia questionar a respeito do tempo: em 2037 cada vez mais havia uma
diminuição na população que vivia dentro dos distritos de Gaia, o mundo que
virou um único império e considerado pela maioria dos humanos como um paraíso,
como também o começo de um investimento por parte de algumas associações de
cientistas em um projeto ‘friend.Bot’. Nunca soube em detalhes, só que eu sou
um ‘primeiro’.
“Aqueles
sorteados dentro do perfil de ‘bons cidadãos’ de nossa honrável Gaia e
inscritos em nosso projeto, especialmente os que possuem necessidade de um
amigo fiel e que não possuem condições de cura em seu estado terminal de saúde:
está chegando, após vários estágios de triais, os primeiros da coleção de
‘friend.Bot’ que distribuiremos gratuitamente”
A partir de meses
depois do lançamento, os cientistas começaram a avançar nas programações e a
simularem mais ainda o ser humano em sua nova linha de criações. Assim, os que
foram os primeiros ‘friend.Bot’ passaram a serem vistos como antiguidades e a
serem nomeados como ‘primeiros’.
Apesar de estarmos
quase na metade do século XXI e que o avanço tanto na medicina e na tecnologia
tenha colaborado em melhores condições de vida na nova Gaia, as guerras
mundiais antes do império fizeram vírus perigosos, mantidos em cativeiro em
laboratórios protegidos por poucos governos, disseminarem-se nas grandes
nações. É por causa disto e também pela ideia fanática da substituição humana
que deflagrou grupos extremistas que tentam retroceder o tempo. Como também o
abandono de doentes pelas famílias.
Tenho irmãos, meus pais
me dizem; porém, desde que cheguei neste lugar, nunca os vi e tampouco eles nos
visitaram. Pelo pouco que me informaram, isto é pelo desgaste interno de meu
pai e de minha mãe: ainda que pareçam realmente sadios para seus oitenta anos,
são internamente monitorados por máquinas um pouco maiores do que bactérias e
possuem apenas mais alguns anos de vida. E há uma ideia de descarte dos que não
parecem aproveitáveis pelo sistema que rege Gaia, custando caro manter estes.
Repensando nisto me
faz... Imaginar se eles não estão bem agora por minha causa. Não sei se isso é
devido à minha programação ou então por conta de talvez, apenas talvez, eu
estar sentindo algo. “Você possui um
nome, querida?”, minha mãe, Sra. Pinheiro, tinha me perguntado depois de
uma semana de convivência. Ela havia me oferecido uma xícara de porcelana com
chá de canela, o que aceitei com relutância pelo meu próprio sistema não digerir
bem. “Tenho”, eu disse antes de pronunciar minha sequencia de números. “Você se importaria
se eu a desse um nome, anjo? É que... Números... Parece até que estamos em uma
relação de senhora e escravo... Para mim, és uma criança”
Fiquei confusa diante
da proposta. Não, não confusa: aquilo não fazia sentido, no entanto acabei
cedendo. Mas ela ainda não parecia satisfeita, é o que percebo ao me recordar
dela quieta após eu assentir minha cabeça. “Talvez”, um sorriso se formou
em seu rosto de aroma de coco, “seja mais respeitoso eu a deixar escolher, não? Afinal, a
identidade, é você quem forma”. E me entregou, dois dias depois, um
livro que continha a lista de diversos nomes. Disse para eu ler os nomes, os
significados, passar o tempo que eu quiser enquanto eu escolher.
No Natal, no momento em
que eu vi as luzes piscando e tinha mais algumas ideias sobre outros
significados da palavra humanidade – ainda que eu não conseguisse ser humana,
por mais que eu tentasse para poder realizar o desejo de meus pais –, ainda não
havia decidido um nome certo. Segundo minha pesquisa, dois pareciam ser de meu
interesse. Anne e Sophie. O primeiro por ser um nome de uma das mães de meus
pais, Sophie por ‘sabedoria’; meu criador me mencionara que nosso objetivo era
também procurá-la.
Era quase meia-noite e
mal percebi que meus pais tinham dormido, embora notasse a ausência da presença
deles. Posteriormente descobriria que estariam dormindo. Mas naquele momento,
tudo o que entrava em meus circuitos era a mensagem de ‘como eu escolheria um
nome que me fizesse ser mais parte desta família’. Pelo menos era até eu
escutar um barulho estranho no andar de cima. Pew. Pew. Pow. Pow. Quase acreditaria que viria da tevê (provavelmente
um programa de super-heróis), se esta não estivesse ligada e o foco fosse
realmente lá em cima. Lembro ter olhado para cima e depois tentar investigar
com uma visão especial o que acontecia. Porém, assim que vi, preocupei-me.
Dois corpos no chão.
Uma mulher jovem, um homem adulto, uma poça de sangue. Fiquei em alerta e pronta
para alertar meus pais do evento estranho, porém algo a mais me chamou a
atenção o suficiente para me fazer parar: um garoto. A criança estava na cena
do crime, mas escondido dentro de um guarda-roupa. Segundo o que percebia das temperaturas
pela minha visão, ela estava manchada de alguma coisa... Barulho crescia por
todo o restante do prédio.
Eu olhei para os lados
por alguns minutos, antes de decidir abrir a porta e ver toda a movimentação que
os vizinhos do edifício faziam. Parecia que eu não precisaria resolver, já que
tiros não foram mais dados e que eu conseguia escutar outras pessoas lá em cima.
“Talvez”, pensei, “não seja meu dever agora”, e fechei a
porta para então voltar à lista de nomes. Mas quando me virei, eu me deparei
com uma sinueta se revelando no ar e uma arma mirada contra mim.
Permaneci por um bom
momento pensando: estávamos entre silêncio, meus pais ainda estavam dentro do
quarto e ainda havia pessoas fora da porta. Meus olhos encaram os do assassino
com forte cheiro de sangue, e só então: “Como você fez para poder vir para
dentro?”, perguntei neutra, espiando o cano que estava na direção da minha testa,
“Não consegui detectá-lo vindo”. A minha resposta demorou a vir, antes dele
abaixar a arma após nos entreolharmos por minutos e ele rir ao comentar “Não tem medo de
morrer?”.
“Não estou viva”, foi o
que consegui dizer, “como posso morrer, então? E por quê você aponta isso, se
está vivo?”, eu me referia à arma que ele carregava com tais jovens mãos, “Se
você sabe o que é ser vivo, por quê não permite outros?”. “Eu não sou vivo”, o garoto
me respondeu e notei como seus olhos pareciam querer me atingir como duas
facas, “Estou
apenas sobrevivendo como posso. O que nosso mundo se tornou não é justo,
diferente do que você pode pensar por ser ingênua. Por quê não permito outros a
viver? Para sobreviver. E por qual razão eles permitiriam? São tão ladrões
quanto eu”.
Foi difícil a conversa
se tornar mais pacífica pela tensão. Eu não era permitida, nem pela criação e
nem pelos comandos dos meus pais, a matar. Só pensei em defendê-los de uma
possível ameaça, então, vendo-o sujo e com pessoas ao seu encalço, fiz ele me
prometer que não machucaria ninguém se eu o ajudasse a se esconder. Feito
aquilo, apenas precisei deixá-lo no banheiro e dar coisas que tínhamos em
quantidade como roupas e comida. Não sei o que ocorreu para que depois o garoto
continuasse a voltar para me visitar e conversar comigo, mesmo depois de saber que eu não sou humana.
Também soube um pouco mais, como viria em uma área considerada negra por Gaia e
que o governo tirou a família dele “Mamãe e meus irmãos estavam doentes com algo que
muitos dos poderosos de Gaia acharam ser inútil curar, então sacrificaram minha
família”.
Sacrificar.
Papai já me falou sobre isso. “Na cabeça de algumas pessoas, há a crença de que uma das
razões do mundo não abrir oportunidades para todos é esse investimento em
inteligências artificiais que sejam capazes ou perto de ter sentimentos. A
verdade é que a culpa não é das criações, mas apenas que as pessoas não
conseguem aceitar que a culpa está muito invisível”. Percebendo minha
situação agora... Não conseguindo mais escutá-los direito e com ruídos
metálicos em meu ouvido... Será que eu serei...?
FIM
Segundo minha ideia original, era pra ser meio longa por ir mostrando mais a relação entre a menina e o menino, além de também o fim depois dela voltar ao presente. Mas como eu não consegui fazer toda a ideia principal no limite de páginas, acabei deixando o final aberto :)
Não sei por qual motivo eu me sinto mais com energia pra contos tristes do que os alegres ultimamente ._. Enfim, até a próxima, pessoal~
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