O
toque do telefone ecoou como tantas outras vezes. Sem anúncios, sem prelúdios,
sem poesia. Até seu estridente som, hermético, passível.
—
Alô?
—
Verônica, morrer dói?
A
voz era calma como o amanhecer póstumo da tempestade que jamais passaria. O
próprio horizonte, tingido de aurora enquanto a voz sequer gritava atrás do
silêncio.
—
Bernardo, é você? Quem é que está falando?
—
Eu fiz uma pergunta, Nica. Morrer dói?
Confirmou
sem negar, negou sem confirmação. Prosseguiria.
—
Ai, Bê, é você, né? Que papo mais estranho é esse? — ainda ria, encabulada com
o reaparecimento do ex.
—
Por favor, só me responda. Morrer dói?
—
Como que eu vou saber, Bernardo? Até hoje nunca morri.
—
Allan Kardec diz que morrer não dói.
—
Kardec? Achei que você fosse ateu.
—
Não importa. É banal.
Silêncio.
Do outro lado da linha — a reta que em poucos segundos se estendia muito mais
longe do que os dedos macios da jovem poderiam tocar — o vento batia no bocal e
relinchava, comportadamente selvagem.
—
Está ventando. Onde você está, Bernardo?
—
Por que você terminou comigo? — inexistia a alternância vocal. Toda a
comunicação era uníssona.
—
Como assim por que eu ter... Que papo estranho é esse, Bernardo? Onde você
está?
—
Estou vencendo mais um medo. Uma vez lhe prometi que venceria todos os medos
por você. Lembrou?
Listou
rapidamente as fobias do franzino rapaz. Água. Aranhas. Escuridão. Solidão.
Altura.
Ele
prosseguiu falando:
—
Você me prometeu que seríamos amigos.
—
E nós somos, Bê — O temor começava a acariciar-lhe a alva nuca enquanto beijava
seus ouvidos, rindo sedutora. — E nós prometemos que seríamos muito felizes,
lembra-se?
—
Você prometeu. Eu nunca prometi nada. Não gosto de promessas.
As
palavras guarneceram sua garganta e arranharam-lhe a alma. Não conseguia falar.
—
Promessas são como corações, Verônica. Foram feitas para serem quebradas.
—
Ai, Bernardo, dá pra parar? Você está me deixando com medo. Onde você está?
—
Estou vendo o pôr do sol. Ele é lindo daqui do seu prédio.
Passou
os olhos pelo relógio de pulso. 18h45. Quase na hora de ir para a faculdade.
—
Como assim daqui do meu prédio? Você
está aqui no prédio? Em qual andar?
—
No único que jamais tive coragem de conhecer.
Silêncio.
Seria um bom momento para jazz. Talvez blues.
—
O problema com o nosso amor é que eu não fui feito para ser amado, Verônica. De
todas as dores... eu sempre fui a mais doída. Até agora. Porque agora há uma
promessa que posso fazer que jamais será quebrada.
—
E que promessa é essa, Bernardo?
—
De que meu último pensamento foi seu.
São
Paulo era laranja no aproximar da noite. Do vigésimo sexto andar, o sol tocava
o chão e fundiam-se em aquarela cinzenta jamais retratada. Era quente ainda que
a brisa rebatesse nas janelas brilhantes e aquele vulto esbranquiçado corresse
andares abaixo enquanto o telefone zunia ao duelar contra o vento. Por fim,
tudo estava bem.
Exceto
pela insolúvel gelatina de ossos muitos metros abaixo.
Clique.
A
ligação caiu.
“Jovem se suicida na Zona Sul de São
Paulo”.
Virara
manchete. Transformaram o poeta em notícia.
A
metrópole o engoliu pelos pés.
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