É mais ou menos uma paráfrase de A Metamorfose, do Kafka. Mais ou menos, ok?
Não recomendo para alérgicos ou formigofóbicos (viva a licença poética e os neologismos!).
Boa coceira!
Formigueiro humano
Nunca odiei formigas.
Quando
eu era pequena, aos três ou quatro anos, numa festinha de dia das crianças no meu clube, pisei em um algodão-doce
que alguma outra criança desmiolada havia derrubado no chão. Tamanho era meu
entusiasmo na brincadeira, que nem ao menos reparei e continuei correndo. Até
parar em cima de um formigueiro. Praticamente fui devorada viva.
Meu
pai, depois de me resgatar, começou a fazer piadas com o único objetivo de
interromper as lágrimas que escorriam do meu rosto: “Mas, princesa, imagina só
se uma gigantona pisasse na sua casinha? Você ia ficar bravuca, não ia?”, assenti, “a parte boa é que essa gigantona de
Maria-Chiquinha estaria com o pé toooodo sujo da sua comida favorita! De... de
brigadeiro! Aí, as Aninhas em miniatura iam se dividir em dois grupos: as que
ficaram chateadas porque foram pisoteadas, e as gulosas que também correriam
até a gigantona, pra comer brigadeiro!” exclamou, antes de me encher de
cócegas. E eu ri, e ri, e ri.. E logo as lágrimas voltaram a aparecer, mas
dessa vez porque estava feliz. “Já pensou no jornal do dia seguinte? “EXTRA!
EXTRA! Giganta de brigadeiro tropeça na casinha da Ana, mata a fome das Aninhas
e acaba cheia de picadas!” “.
O
problema é que eu tinha uma frieira no dedo mindinho do pé, e duas formiguinhas
oportunistas acabaram entrando por lá. Elas eram curiosas, aventureiras,
queriam ver se meu recheio também era de algodão doce. Por esse motivo, quase
perdi o dedo, passei alguns dias internada no hospital.No final das contas, os
médicos conseguiram tirar uma delas e controlar a infecção. Concluíram que a
segunda formiga nunca tinha conseguido entrar, por isso que era inencontrável. Sendo assim, continuei
com o dedo – e com uma formiga morando dentro de mim.
Tirando
esse acontecimento, elas nunca mais tinham me incomodado. Isso é até curioso,
porque tenho uma séria tendência a me traumatizar e, curiosamente, não tenho
nenhum problema com esse inseto.
Sempre
respeitei as filas domésticas, o formigueirinho dentro da parede da pia da
cozinha e aquelas formigonas de interior, que as pessoas gostam de esmagar. Na
verdade, de todos os insetos, as formigas sempre foram as minhas mais queridas.
Acho que porque eu, mesmo sem saber, já era um pouco formiga.
Os
anos se passaram e eu cresci bem. Na casa nova, havia poucas delas, só
encontrava, às vezes, meia dúzia delas passeando pelo balcão.
Aí,
subitamente, todas voltaram. De uma vez só. Muitas, muitas formigas. Pelas
portas dos armários, pelas janelas, pela mesa da sala. Não havia um só doce,
por mais chato que ele fosse que não acabasse coberto por formigas. Até uma
torta de liquidificador de maçã, pouquíssimo inspiradora. Começamos deixar as
sobremesas suspensas naquelas armadilhas, sabe? Como se os doces fossem os
castelos, rodeados pelo clássico fosso. E elas, tão desesperadas e famintas,
jogavam-se na água em uma tentativa louca de alcançar o que quer que fosse.
Um
dia, tomando café da manhã notei uma formiguinha passeando pelo meu braço. Ela
provavelmente tinha chegado lá por meio do frasco de mel, que eu tinha acabado
de segurar. A perspectiva de estar comendo mel formigado embrulhou meu
estômago. Assoprei a criaturinha que passeava pelo meu braço e ri ao vê-la voar
de volta à bancada.
O
curioso foi quando, na faculdade, no meio de uma aula, senti uma coceira no
pescoço e ao passar a mão para interrompê-la, vi uma formiga. Não fazia o menor
sentido. Desta vez, simplesmente a esmaguei na mesa, sem remorso.
E
dez minutos depois, enquanto meu couro-cabeludo coçava estranhei a subida
crise.
O
resto do dia passou naturalmente. E o outro dia, e o seguinte.
No
almoço de quarta vi com o canto do olho uma formiguinha aparecer em meu braço.
Literalmente. Aparecer. Ela não estava lá, e subitamente estava. Saco. Lixo de
casa, lixo de infestação.
De
sobremesa comi três pedaços de pudim, muito mais do que o habitual. Precisava
de doce. Muito doce. Açúcar. Muito açúcar.
E durante a lição de casa meu braço
começou a coçar. E minha perna, e meus ombros, e meio pescoço, e a agonia era
tamanha que peguei uma escova de cabelo e comecei a pentear com violência minha
pele, em busca de alívio.
Depois
do banho tinham duas formigas passeando pelas minhas costas. Inferno. Fixação
comigo. Cruzes!
E
as coceiras só aumentaram. Junto com minha ânsia por doces. Junto com as
formigas que vagavam por meu corpo.
Meus
sonhos ficaram pontilhados em preto, pixelados, e a delicada movimentação em
minha cama ficava cada vez mais confortável. Com o passar dos dias, usar
cobertor mostrou-se desnecessário, pois havia um manto negro estático, que me
abrigava e aquecia. Um manto que fazia cócegas e eu não sentia nenhum um
impulso em matá-las, sua presença era segura, feliz.
Não precisávamos mais de roupas, pessoas ou
comida. Banho era algo impensável para nós, pois poderia trazer um grande dano
à nossa casa, já que perderíamos muitas irmãs com a água corrente.
Só queríamos comida e docinhos. E logo, mesmo
parada estávamos em movimento, porque deixei de ser eu e virei nós. Buscávamos
comida e assim sobrevivíamos. Eu não precisava de nada que não aceitar
o eco de
milhões de formigas, minhas novas células, dentro de mim.
E um dia saímos correndo em busca de um lugar
onde eu pudesse assentar, para nós tivéssemos uma vida mais estável. Deitei-me
em um canteiro numa praça, e nunca mais me levantei.
Eu amei esse texto, já disse? <3
ResponderExcluirMuito legal, você escreve muito bem, me prendeu até o fim da leitura!
ResponderExcluircafe-elivro.blogspot.com