Olá!
O conto quase folhetinesco de hoje fala sobre amor, preconceito e como as pessoas no início do século passado estavam presas aos valores do, ainda muito presente, século XIX.
Escrevi esse em 2009, quando estava no 3º ano, para uma amiga minha da turma que pediu que eu escrevesse alguma coisa para ela
.
.
O conto tem forte inspiração no poema "Ismália" de Alphonsus de Guimaraens.
"Viu uma Lua no céu,
Viu outra Lua no mar."
Duas
Luas
Até
aquele dia Anita Lemos não sabia o que era loucura e desespero. Um desespero
tão assombrador e profundo, que mata. Mas como alguém enlouquece?
Tudo
começou naquela fria manhã de quarta-feira de 1903; ela acordou assustada às
cinco e meia, olhou pela janela e viu que algumas nuvens cinzentas deixavam o
final da noite ainda mais escuro. Desceu as escadas correndo, do sobrado na Rua
de Santana, foi no quartinho dos fundos. Sacudiu Pedrinho, que acordou
assustado.
―
Senhorita Anita! O que houve?
―
Sem perguntas, Pedrinho. Pegue esse recado e entregue para o Araújo na Rua das
Laranjeiras...
―
Laranjeiras! Mas ainda nem amanheceu ― ele olhou pela janela e tapou a cabeça
com o cobertor. ― E parece que vai cair o maior pé d’água.
―
Então leve o guarda-chuvas! ― ela disse, erguendo o dedo tal qual Scarllert
O’Hara e apressando o menino.
Fazia
uma semana que Anita e Araújo não se encontravam. Ele sempre vinha com as
mesmas desculpas: ‘trabalho em demasiado’, ‘a contabilidade me toma muito
tempo...’, ‘oras, você sabe que o governo não perdoa quem não paga os tributos!’.
No
café, a senhora Lemos, mãe de Anita, já estava vermelha de tanto gritar.
―
Anita! O que pensa que irá ganhar mandando bilhetes para ele? O senhor Cláudio
Araújo não tem tempo a perder com uma menina de dezessete anos.
―
Eu o amo, e hei de me casar com ele...
―
Omessa... ― a mãe continuou.
Como
de costume a briga entre as duas durou todo o desjejum.
Às
dez, Anita e Araújo se encontraram no Passeio e ficaram por lá até o meio-dia.
―
Falei com Padre Douglas hoje ― dizia o senhor Araújo. ― Marquei a data para o
começo de julho.
―
Ótimo, Araújo! ― ela animava-se. ― Agora mamãe não vai mais poder nos impedir ―
e roubou um beijinho do amado.
Porém,
já dizia um poeta: os planos mudam...
~~x~~
Irmã
Maria era noviça do Convento de Santo Antônio, Largo da Carioca. Conheceu
Araújo na última missa de Natal; em fevereiro começaram um caso. Pedrinho logo
descobriu, pois era esperto e costumava ir à missa com a mãe, Judite. O moleque
tentou por várias vezes contar a Anita, mas ela sempre mudava de assunto na
hora que ele ia começar.
Certa
tarde, quando Anita e Judite haviam ido ao armazém, Pedrinho contou tudo para a
senhora Lemos, que lhe agradeceu com entradas para a mais nova comédia em
cartaz no Teatro São João.
Faltava
pouco para o dia do casório quando a maquiavélica senhora Lemos fez um trato
com Irmã Maria:
―
Separe-os, e ficas com o Araújo só para ti.
Sem
nem titubear, a noviça aceitou e as duas fizeram a trama.
Agora
faltavam dois dias para o casamento, e Anita não via Araújo há três. Ficou sabendo,
já no fim da tarde, quando foi ao escritório contábil dele, que o noivo tinha
ido atender a um cliente na Glória. Encheu o saco do secretário e conseguiu o dito
endereço.
Ao
chegar lá, Anita desceu do coche, entrou no prédio e foi até o quarto indicado
no papel. A porta estava entreaberta e ela entrou. Anita ficou chocada com o
que viu: senhor Cláudio Araújo e Irmã Maria desnorteados de prazer.
Não
tardou para que a discussão começasse e atingisse níveis baixíssimos.
―
Você não teve coragem de fazer, virgenzinha. Portanto, eu fiz ― Irmã Maria ria.
―
Você é uma cortesã disfarçada de Noviça. Vou mandar o Papa excomungá-la!
Irmã
Maria a esbofeteou, Anita jogou a aliança de noivado sobre a cama e saiu de lá
chorando.
De
volta ao sobrado na Rua de Santana, trancou-se no quarto por uma semana. Em uma
madrugada, Anita foi nas pontas dos pés até o quartinho dos fundos e encontrou Pedrinho
acordado.
―
Anita? Que faz aqui a estas horas?
―
Não conseguia dormir.
―
Entendo, também tenho tido problemas para me trancar no mundo dos sonhos ― eles
riram. ― Eu... tenho que lhe dizer uma coisa.
―
Pois diga, afinal fomos criado juntos, temos a mesma ida...
―
Eu te amo!
Anita,
branca dos olhos azuis e Pedro, negro dos olhos ocre, se puseram de pé e
beijaram-se com uma paixão avassaladora. Enquanto se beijavam caíram na cama
entregando-se ao prazer carnal.
A
senhora Lemos obrigou-os a se casarem, depois de descobrir que Anita estava
grávida. No começo de dezembro todos se mudaram para uma cidade praiana no Rio
Grande do Sul.
Os
gêmeos, mulatos dos olhos azuis, nasceram em março, prematuros, porém
saudáveis.
~~x~~
As
últimas que chegaram aos ouvidos de Padre Douglas eram que (Irmã) Maria havia
se tornado a rameira mais requisitada e fogosa de Manaus.
O
senhor Cláudio Araújo continuou frequentando as festas da nata da sociedade carioca.
As pessoas o tratavam bem, mas pelas
costas sempre falavam que era o homem que traíra Anita Lemos com a Noviça
Maria.
~~x~~
Não
demorou muito para que Anita Lemos da Cunha, esposa de Pedro da Cunha,
trancasse-se no quarto mais alto da torre-farol perto de onde a família Lemos
da Cunha estava morando no litoral gaúcho.
Tudo
terminou, exatos cinco anos depois, numa noite de sábado de 1908.
Dessa
vez, era noite de Lua Cheia e o céu estava limpo.
“Quando Anita
enlouqueceu, pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no
céu, viu outra lua no mar.
No sonho em que
se perdeu, banhou-se toda em luar.
Estava perto do
céu, estava longe do mar.
As asas que Deus
lhe deu ruflaram de par em par.
Sua alma subiu ao
céu.
Seu corpo desceu
ao mar.”
Fim.
até...
Você quer aparecer aqui no Feito a Mão com seu texto, conto, crônica ou poesia? Envie o seu material para gente no contatonra@gmail.com
Adorei o conto!
ResponderExcluirBeijo,
Vinícius - Livros & Rabiscos
Obrigado, Vinícius!
Excluir=)
até...
Drigo, achei muito legal.
ResponderExcluirIsmália é um dos meus poemas favoritos, fiquei hiper feliz ao reencontrá-lo no seu conto.
Gosto muito de textos atuais que retomam ao romantismo, mas achei seu conto tão rápido! Eu entendi que você queria contar uma história longa em poucas linhas, mas me senti vendo uma porção de flashes de algo que poderia se desenvolver muito, muito, muito.
Que tal um livro? #aquelas.
Brincadeira, está incrível.
A unica coisa que eu sugeriria é de tomar cuidado ao misturar expressões atuais e antigas (tudo bem usar as primeiras ou as segundas, mas o "encher o saco" poucas linhas depois de um "omessa..." acaba quebrando um pouco a ambientação).
Nossa, to encantada. Ismália é um poema maravilhoso e você o usou super bem.
Beijos, querido!
Caraca! A MEL GEVE RESENHOU MEU CONTO!!!
ExcluirPraticamente a Bárbara Heliodora dos livros, hahaha.
Verdade, esse "encheu o saco" acabou passando. Pelo menos dá um ar meio despojado ao texto. rs
Beijos, querida!
até...