Banner Submarino

sábado, 13 de abril de 2013

[FEITO A MÃO] Duas Luas

Olá!
O conto quase folhetinesco de hoje fala sobre amor, preconceito e como as pessoas no início do século passado estavam presas aos valores do, ainda muito presente, século XIX.
Escrevi esse em 2009, quando estava no 3º ano, para uma amiga minha da turma que pediu que eu escrevesse alguma coisa para ela

O conto tem forte inspiração no poema "Ismália" de Alphonsus de Guimaraens.
"Viu uma Lua no céu,
Viu outra Lua no mar."



Duas Luas

Até aquele dia Anita Lemos não sabia o que era loucura e desespero. Um desespero tão assombrador e profundo, que mata. Mas como alguém enlouquece?
Tudo começou naquela fria manhã de quarta-feira de 1903; ela acordou assustada às cinco e meia, olhou pela janela e viu que algumas nuvens cinzentas deixavam o final da noite ainda mais escuro. Desceu as escadas correndo, do sobrado na Rua de Santana, foi no quartinho dos fundos. Sacudiu Pedrinho, que acordou assustado.
― Senhorita Anita! O que houve?
― Sem perguntas, Pedrinho. Pegue esse recado e entregue para o Araújo na Rua das Laranjeiras...
― Laranjeiras! Mas ainda nem amanheceu ― ele olhou pela janela e tapou a cabeça com o cobertor. ― E parece que vai cair o maior pé d’água.
― Então leve o guarda-chuvas! ― ela disse, erguendo o dedo tal qual Scarllert O’Hara e apressando o menino.
Fazia uma semana que Anita e Araújo não se encontravam. Ele sempre vinha com as mesmas desculpas: ‘trabalho em demasiado’, ‘a contabilidade me toma muito tempo...’, ‘oras, você sabe que o governo não perdoa quem não paga os tributos!’.
No café, a senhora Lemos, mãe de Anita, já estava vermelha de tanto gritar.
― Anita! O que pensa que irá ganhar mandando bilhetes para ele? O senhor Cláudio Araújo não tem tempo a perder com uma menina de dezessete anos.
― Eu o amo, e hei de me casar com ele...
― Omessa... ― a mãe continuou.
Como de costume a briga entre as duas durou todo o desjejum.
Às dez, Anita e Araújo se encontraram no Passeio e ficaram por lá até o meio-dia.
― Falei com Padre Douglas hoje ― dizia o senhor Araújo. ― Marquei a data para o começo de julho.
― Ótimo, Araújo! ― ela animava-se. ― Agora mamãe não vai mais poder nos impedir ― e roubou um beijinho do amado.
Porém, já dizia um poeta: os planos mudam...
~~x~~
Irmã Maria era noviça do Convento de Santo Antônio, Largo da Carioca. Conheceu Araújo na última missa de Natal; em fevereiro começaram um caso. Pedrinho logo descobriu, pois era esperto e costumava ir à missa com a mãe, Judite. O moleque tentou por várias vezes contar a Anita, mas ela sempre mudava de assunto na hora que ele ia começar.
Certa tarde, quando Anita e Judite haviam ido ao armazém, Pedrinho contou tudo para a senhora Lemos, que lhe agradeceu com entradas para a mais nova comédia em cartaz no Teatro São João.
Faltava pouco para o dia do casório quando a maquiavélica senhora Lemos fez um trato com Irmã Maria:
― Separe-os, e ficas com o Araújo só para ti.
Sem nem titubear, a noviça aceitou e as duas fizeram a trama.
Agora faltavam dois dias para o casamento, e Anita não via Araújo há três. Ficou sabendo, já no fim da tarde, quando foi ao escritório contábil dele, que o noivo tinha ido atender a um cliente na Glória. Encheu o saco do secretário e conseguiu o dito endereço.
Ao chegar lá, Anita desceu do coche, entrou no prédio e foi até o quarto indicado no papel. A porta estava entreaberta e ela entrou. Anita ficou chocada com o que viu: senhor Cláudio Araújo e Irmã Maria desnorteados de prazer.
Não tardou para que a discussão começasse e atingisse níveis baixíssimos.
― Você não teve coragem de fazer, virgenzinha. Portanto, eu fiz ― Irmã Maria ria.
― Você é uma cortesã disfarçada de Noviça. Vou mandar o Papa excomungá-la!
Irmã Maria a esbofeteou, Anita jogou a aliança de noivado sobre a cama e saiu de lá chorando.
De volta ao sobrado na Rua de Santana, trancou-se no quarto por uma semana. Em uma madrugada, Anita foi nas pontas dos pés até o quartinho dos fundos e encontrou Pedrinho acordado.
― Anita? Que faz aqui a estas horas?
― Não conseguia dormir.
― Entendo, também tenho tido problemas para me trancar no mundo dos sonhos ― eles riram. ― Eu... tenho que lhe dizer uma coisa.
― Pois diga, afinal fomos criado juntos, temos a mesma ida...
― Eu te amo!
Anita, branca dos olhos azuis e Pedro, negro dos olhos ocre, se puseram de pé e beijaram-se com uma paixão avassaladora. Enquanto se beijavam caíram na cama entregando-se ao prazer carnal.
A senhora Lemos obrigou-os a se casarem, depois de descobrir que Anita estava grávida. No começo de dezembro todos se mudaram para uma cidade praiana no Rio Grande do Sul.
Os gêmeos, mulatos dos olhos azuis, nasceram em março, prematuros, porém saudáveis.
~~x~~
As últimas que chegaram aos ouvidos de Padre Douglas eram que (Irmã) Maria havia se tornado a rameira mais requisitada e fogosa de Manaus.
O senhor Cláudio Araújo continuou frequentando as festas da nata da sociedade carioca. As pessoas o tratavam bem, mas pelas costas sempre falavam que era o homem que traíra Anita Lemos com a Noviça Maria.
~~x~~
Não demorou muito para que Anita Lemos da Cunha, esposa de Pedro da Cunha, trancasse-se no quarto mais alto da torre-farol perto de onde a família Lemos da Cunha estava morando no litoral gaúcho.
Tudo terminou, exatos cinco anos depois, numa noite de sábado de 1908.
Dessa vez, era noite de Lua Cheia e o céu estava limpo.

“Quando Anita enlouqueceu, pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no céu, viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu, banhou-se toda em luar.
Estava perto do céu, estava longe do mar.
As asas que Deus lhe deu ruflaram de par em par.
Sua alma subiu ao céu.
Seu corpo desceu ao mar.”

Fim.

até...

 Você quer aparecer aqui no Feito a Mão com seu texto, conto, crônica ou poesia? Envie o seu material para gente no contatonra@gmail.com

Comente com o Facebook:

4 comentários:

  1. Drigo, achei muito legal.

    Ismália é um dos meus poemas favoritos, fiquei hiper feliz ao reencontrá-lo no seu conto.

    Gosto muito de textos atuais que retomam ao romantismo, mas achei seu conto tão rápido! Eu entendi que você queria contar uma história longa em poucas linhas, mas me senti vendo uma porção de flashes de algo que poderia se desenvolver muito, muito, muito.
    Que tal um livro? #aquelas.

    Brincadeira, está incrível.

    A unica coisa que eu sugeriria é de tomar cuidado ao misturar expressões atuais e antigas (tudo bem usar as primeiras ou as segundas, mas o "encher o saco" poucas linhas depois de um "omessa..." acaba quebrando um pouco a ambientação).

    Nossa, to encantada. Ismália é um poema maravilhoso e você o usou super bem.

    Beijos, querido!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Caraca! A MEL GEVE RESENHOU MEU CONTO!!!
      Praticamente a Bárbara Heliodora dos livros, hahaha.
      Verdade, esse "encheu o saco" acabou passando. Pelo menos dá um ar meio despojado ao texto. rs

      Beijos, querida!

      até...

      Excluir