Envolvendo uma memória com cinco meninos da sexta série, receios, um desafio e um beijo.
RECEIOS
Na sexta série, uma das
coleguinhas da escola o chamou:
― E aí Dudu, quer
brincar de verdade ou desafio? ― e ele se virou para olhá-la.
― Brincar? ― o menino
repetiu, confuso. ― Mas brincar com quem? E onde?
― Ah, Dudu, ― Heloísa
bufou em indignação. ― Lá comigo e meus amigos, né!
― Mas eu preciso mesmo
brincar com vocês...? Não posso ficar aqui?
Os olhos da garota já o
encaravam irritados. Ela resmungou baixo e então deu as costas.
― Se você não quiser,
tudo bem! ― e acenou. ― Eu só queria ser legal com você!
Aos doze anos, Eduardo
raramente falava com os demais da classe a não ser que o tema fosse “ir brincar
de futebol” ou então sobre as lancheiras que levavam para a escola. A verdade é
que ele tinha certo receio em tentar começar uma conversa, como ouvia algumas
histórias a seu respeito pipocarem entre as demais crianças: mudara-se para
aquele colégio faz um ano, pois ocorrera no anterior uma confusão envolvendo
ele, uma janela quebrada e um ‘menino grande’ – como a classe de Dudu chamavam
aqueles desde a faixa dos 14 anos – que era conhecido por fazer arruaças. Só
que o caso dificultou, segundo as pistas apresentadas, quem era o
‘quebra-leis’: assim, dependentes da força da imaginação dos demais estudantes,
a ideia que prevaleceu foi a que culpava Eduardo.
Eduardo, o anti-social.
Eduardo, o menino que aos seis anos comia cola. Eduardo, o garoto calado que
poucos sabiam o que estavam pensando. Eduardo, o menino que fez pum no meio da
aula aos dez anos. Eduardo, o possível psicopata. eduardo, Eduardo, EDUARDO, “EDUARDO!”
podia relembrar do mesmo som do trincar do cinto de seu tio alcoólatra em seus
braços quando “Não faz nada direito! Nem para pegar minha pinga, seu
nojentozinho!”. Sua mãe o dissera que seu tio estava preso e que eles dois
estavam bem, mas quem poderia garantir que viveriam por mais tempo? Além disso,
ainda que estivesse tentando se recuperar com uma psicóloga e com um pedagogo,
achava difícil clarear aquelas imagens da memória. As mesmas que o deixavam trêmulo,
as mesmas que o faziam se perguntar se aguentaria mais um dia...
Antes que ele desse
conta, já estava andando até a uma roda:
― Aê, Dudu! ― um menino
o cumprimentou com um sorriso travesso. ― Vem cá!
― Eu não sabia que você
tinha essa coragem. ― ironizou Heloísa, embora sorrisse.
― Que bom que ele veio,
não é, Gil? ― outra garota, Rebecca, disse animada.
― Bom...? ― um menino
menor e baixinho parecia estar em pânico ao vê-lo.
Eduardo se sentou
calado, movido pela culpa, no lugar vago entre o menino faladeiro e o quieto. Os
cumprimentos prosseguiram ainda por um ou dois minutos. Observava que o menor
dos demais parecia estar tentando evitar fazer um contato visual; logo se
intrigou e revirou suas lembranças para encontrar a que pertencia à sensação de
conhecê-lo: aquele era Gilberto, o sobrinho do padre diretor da escola
anterior. Este não chegava a falar muito, apesar de muitos o acharem um ‘menino
puro’ por ser ‘de igreja’.
Antes que Eduardo
pudesse se interrogar nas reservas de sua mente o que o outro fazia naquela
mesma escola, uma garrafinha vazia já girava no centro. Assim, já começava a
primeira rodada de perguntas, respostas e desafios. Heloísa e o menino maior –
seu nome era Carlos – eram os mais enérgicos nas respostas e tentavam rebater
os desafios, enquanto Rebecca tinha coragem o suficiente para enfrentar aquilo
e um pouco mais.
― Ah, agora sou eu quem
vai perguntar, há, há! ― os olhos dela brilharam na décima terceira rodada,
quando todos estavam cansados. ― Gilberto, verdade ou desafio?
O menino, quem Eduardo
notou que acatava mais a desafios do que respostas, falou:
― ...Desafio... É.
Desafio. ― seu tom de voz, o outro estranhou, estremecia.
O sorriso de Rebecca
aumentou e ela começou a assobiar. Ideias, ideias que pareceram deliciosas a
ela, começaram a dançar em sua mente, a qual guardava certos segredos. Um de
seus dedos cutucava perto de seu queixo e seus olhos se voltaram para o céu de
tarde.
― Eu te desafio... ―
iniciou seu tormento, tal sentimento incitado por um pensamento que guardara no
fundo de sua alma há meses de planejamento. ― Eu te desafio para quê mesmo?
― Rebecca. ― Heloísa disparou um olhar impaciente por não gostar
daquela aura de ‘eu bem sei do que você não saber’ que a outra sempre carregava
em relação aos demais. ― Anda logo, vai...
― Calma, já vou dizer.
― Rebecca deu um risinho. ― Desafio ele a beijar ele.
Carlos, Heloísa e
Eduardo se entreolharam bastante confusos e chocados.
― Hã... ― Carlos
começou assustado como se as possibilidades formadas em sua cabeça tivessem
anteninhas, falassem em línguas alienígenas e não fossem comuns de presenciar.
― Como... Como assim? Beijar...?
Rebecca, no meio do
desespero que se deflagrou entre os três, apenas achou seus colegas tinham
atitudes de tolice e logo revirou os olhos:
― Gil sabe de quem eu
estou falando. ― a menina fez beicinho e gesticulou.
Ela gesticulou na
direção de Eduardo que só então compreendeu o recado “beijar ele”.
Eduardo encarou Rebecca
em questionamento, quem encarou Gilberto em paciência, quem encarou a garrafa
em apreensão.
― Mas o quê?! ― ao
mesmo tempo, Carlos e Heloísa diziam espantados como aquela ideia fosse a
última que passasse em suas cabeças que mal conseguiam acompanhar o que
acontecia.
― Se você não quiser,
tudo bem. ― Rebecca disse a Gilberto com um sorriso. ― Posso pedir de outra
pessoa. ― logo que proferiu desafiadora a última frase, algo (algo obscuro e
sem forma que possuía o dobro de sua altura) despertou no amigo pequeno e ele olhou
Eduardo em conflito do que parecia ser uma mistura de chamas, medo e um
sentimento não muito novo (porém, não era tão antigo quanto a idade daquelas
escolas).
Aquele gesto era como
dissesse “me perdoe” por uma ação que não tinha outra alternativa, antes que
arrastasse seus pés em desleixo para dar cuidadoso um beijo no rosto do outro.
Não na boca, mas um gentil e rápido perto da bochecha (não sabia se estava se
arrependendo, mas era certo de que só imaginar outra pessoa fazendo aquilo o
incomodava, ainda que não gostasse de admitir a irritação por considerá-la
errada). Depois do ato, Gilberto se recolheu calado de volta ao seu lugar e introvertido
evitou contato visual, assim deixando Eduardo em um turbilhão de questões.
FIM
Observações da autora: Eu já tinha lido algumas coisas a respeito de pessoas que se apaixonam ou possuem algum tipo de atração por uma outra do mesmo sexo na infância. Tenho lido por aí (inclusive tem passagens na literatura, eu não referenciando um tempo específico) e até tive contato com certos casos assim por meio de depoimentos de pessoas próximas ou não. Hoje em dia (após me permitir um desenvolvimento do meu ponto de vista do mundo fora das correntes de tradição) encontro isto como natural, embora antes e até agora, conversando com algumas pessoas, outros possam dizer que "esse tipo de comportamento pode ser possível e passível após uma 'certa idade' para validar". Na verdade, já me disseram isso sob sutilezas ou com objetividade.
Apesar desse pensamento ter sido um dos que me circularam na segunda parte do conto e que talvez seja um ou o ponto alto do texto inteiro, não é o ponto-base. O ponto principal, diremos. O ponto principal do texto está contido no título e é o que permeia a história, na qual a palavra "fim" você pode ignorar :)
Quer divulgar seu texto, o seu conto, em nosso espaço (blog e tumblr), caro leitor? Envie-o para nosso e-mail contatonra@gmail.com :)
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