Elijah sempre foi uma criança diferente, ou, como sua mãe prefere chamá-lo: especial. Com isso, surge a dificuldade em ser aceito pela sociedade e até pelo próprio pai. Mas Elijah nunca deixa de ver a beleza da vida e, especialmente, das rosas que colhe num jardim público perto de sua casa.
O Menino e as Rosas
Rosas Para
o Pai
Todo mundo
é especial de alguma forma. Alguns têm talentos excepcionais para música. Outros
são inteligentes ao extremo. Outros são unicamente bonitos. E ainda há aqueles
com tamanha falta de sorte que vivem suas vidas inteiras sem descobrir o que
lhes torna especial entre as pessoas desse louco mundo no qual vivemos.
Mas eu
soube que Elijah era especial desde o momento em que ele nasceu. Eu soube que
ele não era como as pessoas comuns. Isso estava estampado em seu rosto e corpo
e eu pude notar que ele era único apenas ao segurá-lo em meus braços.
As coisas
eram diferentes naquela época. Uma pessoa nascida com uma aparência que não se
encaixava nos padrões da sociedade era tratada ainda pior do que nos dias de
hoje. Eram tempos nos quais crianças com anormalidades eram descartadas como
lixo, e algumas pessoas considerariam Elijah uma delas.
Meu marido
era uma dessas pessoas. Eu me lembro de sua reação quando ele viu nossa criança
pela primeira vez, a criança que geramos na esperança de encontrar algo em
comum que pudesse nos manter juntos.
Eu estava
deitada na cama do hospital. Havia acabado o trabalho de parto quando Jack
entrou no quarto com uma expressão preocupada no rosto e parou na porta.
- É
verdade? - ele perguntou com sua voz grossa e profunda. Seus braços estavam
cruzados sobre o peitoral e ele encarava a pequena coisinha em meus braços,
escondida entre um monte de cobertores.
Eu olho para Jack.
- O que é
verdade?
- Eu ouvi
a enfermeira dizer... – ele está meio rouco e parece incapaz de finalizar a
sentença. Ele pigarreia e por fim pergunta, sem olhar para mim. – É verdade que
nós temos um mongol?
Mongol.
Demente.
Retardado.
Esses eram
apenas alguns dos nomes que as pessoas usavam para definir gente como Elijah.
Eu
acaricio gentilmente os cabelos ralos de meu bebê e balanço a cabeça para Jack,
lhe lançando um olhar de censura.
- Não
chame ele assim, Jack.
- Mas ele
é, não é? – ele descruza os braços e anda em direção à cama. – Anda, deixe eu
ver isso.
Eu hesito,
mas deixo meu marido segurar Elijah. Ele afasta os cobertores para o lado e a
expressão em seu rosto se transforma em desgosto puro. Posso dizer que ele está
se segurando para não dizer nada ofensivo enquanto me entrega o bebê.
- Ele
não... é tão esquisito assim – Jack diz, com dificuldade.
Eu olho
para Elijah. De fato, ele não parece diferente, com exceção de seus pequenos
olhos amendoados, suas mãos gordinhas e dedos pequenos, e o nariz amassado.
Numa olhada rápida, suas diferenças passariam despercebidas. Mas, com o passar
dos anos, elas se tornaram mais evidentes e o ódio de Jack por elas cresceu
ainda mais. E o bebê que nasceu numa esperança de salvar nosso casamento virou,
em pouco tempo, o maior motivo de nossas discussões.
Elijah não
se desenvolvia como as outras crianças. Aos três anos de idade, ele mal
aprendera a falar algumas palavras, enquanto os filhos de minha amiga Sarah, da
mesma idade, já falavam frases completas. Ele também demorou a andar.
Engatinhava pela casa comigo à sua cola, enquanto Jack, sentado no sofá e
fumando charuto, nos dirigia olhares maldosos por cima do jornal.
E Elijah,
ainda com suas dificuldades, se mostrava a criança mais fantástica que eu já
conhecera. Ele sorria mais que qualquer um e acariciava meu rosto com suas
pequenas mãozinhas quando eu lhe segurava em meu colo. Tinha uma curiosidade
única pelo mundo, encantando-se com tudo e qualquer coisa. Gostava,
principalmente, de animais e flores.
Todos os
dias, eu passeava com ele num jardim público próximo. Jack nunca nos
acompanhava, mas todos os dias, ele colhia uma rosa para o pai. E Jack parecia
odiar ainda mais a criança, que reagia a sua brutalidade com inocência e amor.
Ignorava as flores que Elijah trazia, mas o menino sempre as deixava pousadas
no braço do sofá.
Quando
Elijah completou dez anos, Jack nos deixou. Não foi surpresa, mal nos falávamos
havia anos e ele desprezava a mim e meu filho. Ele não nos avisou que ia
partir. Certa manhã, acordei com o barulho de algo caindo. Jack não estava ao
meu lado na cama. Nosso guarda-roupa estava aberto e havia coisas caídas no
chão.
Desci as
escadas e encontrei-o de chapéu na cabeça e mala na mão, se preparando para
partir. Chamei seu nome e ele se virou.
- Aonde
você vai? – perguntei.
Ele
balançou a cabeça. Parecia realmente triste.
- Me
desculpe, Mary – ele disse.
Elijah
surgiu no topo da escada segundos depois. Coçava os olhinhos sonolentos e
agarrou-se à barra de minha camisola.
- O que
houve, mamãe? – perguntou.
- Papai
está indo embora, amor – respondi, acariciando seus cabelos.
Ele soltou
minha camisola e desceu as escadas em direção a Jack. O homem lhe lançou um
olhar de desgosto, mas Elijah não pareceu notar. Ele sorriu para Jack e abraçou
sua cintura.
- Eu te
amo, papai.
Jack ficou
rígido. Não parecia saber como reagir. Pelos maxilares trancados e punhos
cerrados, pensei que ele fosse acertar o menino, mas ao invés disso, Jack
apenas o empurrou para longe, delicadamente.
- Tudo
bem, guri – ele disse.
Elijah
sorriu de novo e voltou para o meu lado, dando-me a mão. Com um aceno de
cabeça, Jack saiu e fechou a porta.
Todos os
dias, continuamos a passear pelo jardim público e, todos os dias, Elijah colhia
uma rosa para Jack. Ele as deixava pousadas no braço do sofá.
O pai
nunca voltou.
Rosas Para
Leslie
Eu sempre
tive medo que Elijah não encontrasse amor no mundo. Ele nunca teve amigos.
Influenciadas pelos preconceitos dos pais, as crianças fugiam e se afastavam
dele. E, quando ele cresceu, as meninas sentiam nojo de suas tentativas de se
aproximar.
Mas,
quando fez quinze anos, ele conheceu Leslie Wrinkles.
Ela era
uma moça da vizinhança. Bem educada, gentil. Estava sentada no jardim lendo o
livro, e Elijah lhe ofereceu uma rosa. Ao contrário das outras garotas, Leslie
aceitou de bom grado. Sorriu para a menina e ela sorriu de volta, e eu
observava tudo à distância.
Leslie
visitava o jardim todos os dias, e Elijah começou a se empolgar ainda mais com
os passeios. Passou a me dispensar e passeava sozinho com a garota. Eu
observava os dois pela janela, contente pela gentileza que ela oferecia ao meu
menino. Mas no fundo eu sabia que os sentimentos que eles sentiam um pelo outro
eram diferentes.
Elijah a
amava, mas ela apenas o tratava bem por educação. Eu ouvira uma vizinha dizer
que ela tinha um noivo. Era, porém, incapaz de dizer a verdade a ele. Andava
tão orgulhoso de si. Chegava em casa após seus passeios com um sorriso no rosto
e o peito estufado. Referia-se à garota como sua namorada. Até que um dia, ele
voltou para casa, cabisbaixo. Tinha lágrimas nos olhos e eu nunca vira o rapaz
tão triste.
Corri para
receber-lhe na porta.
- Amor! O
que houve?
E Elijah
contou. Disse que chegara ao jardim e vira a moça com outro, beijando outro
rapaz! Ela nunca o beijara!
Tomei o
garoto pela mão e guiei-o até o sofá. Ele se sentou, sentei-me ao lado dele e
lhe contei a verdade.
- Querido,
Leslie gosta muito de você – eu disse, acariciando seu rosto. – Mas ela não é
sua namorada.
Os olhos
de Eli se arregalaram em choque.
- Ela é
só... uma boa amiga, tudo bem? Ela não pode ficar com você.
- Por que
não? – ele não entendia.
- Ela tem
um noivo, meu amor.
O fim da
ilusão de ter uma namorada acabou com Elijah. Ele, pela primeira vez na vida,
ficou com raiva. Gritou, chorou e esperneou. Jogou coisas, xingou a menina.
Disse que nunca mais queria vê-la. Recusou-se a ir ao jardim por semanas.
E, então,
para nossa surpresa, Leslie apareceu em nossa porta. Trazia uma rosa para
Elijah, e um livro. Disse que sentia falta do menino. Convidou-nos para seu
casamento. Queria que Elijah fosse o padrinho.
Elijah
ficou feliz. Pareceu perdoar a garota. Abraçou-a e prometeu ir ao casamento.
Colocou a
rosa que ela lhe trouxera num jarro e deixou-a, exposta para todos, na mesa de
centro da sala.
Rosas Para Elijah
Elijah morreu jovem.
Ele, o menino que nunca sentira ódio ou fizera
maldade, morreu vítima do preconceito e da crueldade humana.
Tinha acabado de completar vinte anos. Uma guerra
havia começado na Europa e um simpatizante nazista nos viu na rua enquanto
passeávamos pelo jardim. Era um homem louro, magro, tinha um nariz fino e
pontudo. Parecia bêbado, ainda que o dia mal tivesse raiado.
Ele apontou para meu filho de longe e gritou:
- Ouvi dizer que Hitler mata gente assim na Alemanha!
Eu e Elijah continuamos andando, ignorando o homem.
Mas ele não parecia disposto a nos deixar em paz.
- Você tem é coragem de deixar esse retardado sair de
casa!
Eu não me aguentei. Virei para ele e gritei em
resposta:
- Eu poderia dizer o mesmo sobre a sua mãe.
E então, o homem fez o inesperado. Sacou uma arma de
dentro do paletó e apontou-a para mim.
- O que você disse, vadia?
Elijah arregalou os olhos. Colocou-se na minha frente,
fechou a cara e apontou o indicador para ele.
- Não fala assim com a minha mãe!
O louro apenas sorriu. Um olhar sádico e frio brotou
em seu rosto.
- Vai defender a mamãezinha? – ele disse. – Vão morrer
os dois então!
E atirou no meu filho. Ia atirar em mim também, mas os
passantes saltaram sobre ele e o impediram.
Todos os dias, eu volto ao jardim. Colho uma rosa e
levo ao túmulo de Elijah. Um perfume gostoso impregna o lugar. Trinta anos já
se passaram desde sua morte, mas eu não consigo me desapegar das rosas, as
rosas que me lembram do meu menino especial.
Oie Rayanne!
ResponderExcluirMuito bonito o texto!
Triste porém muito comovente!
Parabéns!
Beijus e uma ótima semana para você!
;***
anereis.
mydearlibrary | bookreviews • music • culture
@mydearlibrary
Nossa, que texto forte, comovente, triste... Mas infelizmente o que mais vemos são pessoas que não sabem lidar com o diferente.
ResponderExcluirLi um livro muito fofo estes dias, Extraordinário, que trata justamente sobre isso. Até quando trataremos o diferente como algo ruim?
Gostei do texto.
beeijos,
Jéssica