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quinta-feira, 13 de junho de 2013

[FEITO A MÃO] Antropofagia, Primeira Parte





 Comer. Nem sempre, você precisa matar pessoas ou literalmente cortar a carne delas para devorá-las. Algumas vezes, tudo o que você precisa é se relacionar ou se conectar com alguém. E, então, um de vocês cairá para o outro se erguer.
     O processo cruel de "tornar-se forte em um meio" pode ser descrito, na mente de uma pessoa chamada Ernesto, como um ato de devorar pessoas para saciar suas necessidades de força. Não que esteja realmente desejando isto: as coisas simplesmente ocorrem até ele ser derrubado morto.
   Acompanhe este conto de duas partes ;)



 Antropofagia

   Preciso devorar coisas. Mas, ás vezes, é difícil de devorá-las. E depois disso, absorver.
   Costumo ouvir que somos o que comemos. Talvez isso não possa ser verdade, porém não acredito que seja uma total mentira. Vivo na cidade desde que me entendo como nascido – com medo de ser atropelado, então ando educadamente nas faixas de pedestres; moro neste miúdo apartamento, olhando outras dezenas de paralelepípedos de vidro; vendo cãezinhos e gatinhos andando pelas ruas, incapacitado de cuidar deles por que a regra que dita neste mundo é “você é seu e único problema” e os animais sofrem isso também –, logo venho sentindo essas coisas.
    Devorei partes de meus pais e partes de outras pessoas para poder andar nestes asfaltos. Fui ensinado a mastigar e a gostar disso, sobre que ter piedade pode trazer consequências – e logo depois entendi que ter piedade não é a mesma coisa que realmente compreender o problema das outras pessoas. Tem ocasiões em que presenciei injustiças por conta de tabelas de números (e não de nomes) de máquinas e de nomes (e não de números) de vidas. Quis chorar mais de uma vez, só que a denominação disso que se corresponde ao meu cérebro é “fraqueza”. Sou forçado a tentar me proteger com uma armadura de “durão” que não é o que sou.
    O mais engraçado de tudo é que eu ainda sorrio. Estou triste ou estou feliz? Quando criança, tinha mais liberdade de me expressar por ser um “pintinho frágil”. As galinhas e os galos, no tempo em que eram bebês, piavam muito ao sentir dor, fome ou vontade de fazer cocô. Só que ao invés de um galinheiro ou uma caixa abandonada sem meu pai ou minha mãe, estou em um campo de cultivação muito maior. Com fazendeiros querendo devorar cada fragmento do “quem sou eu” e “quem eu acho que sou”, todos acostumados a comer, comer e comer. A ração é mais colorida, cheia de ingredientes artificiais e coisas que alteram minha vontade. E isso me cansa. No entanto, algum dos meus amigos me vê com má vontade e comenta com um riso:
— Ernesto, não fica triste não. Ninguém pode ficar triste. Anima aí, vai? — e palmas nas costas.
— Tá. — é o que eu digo enquanto atravessamos a grama do quintal da casa dele, mas...
    Será que estou triste? Algumas vezes, ouço minha irmãzinha caçula comentar “Cara, aquele garoto ali tem uma expressão tão morta” ao assistir a alguma novela com minha mãe. Mas me pergunto algumas vezes se as pessoas precisam estar com um sorriso nos lábios ou um brilho nos olhos para poderem comprovar que estão felizes.
    Uma vez, falei com uma senhora em uma feira e, apesar dela não dar alguma indicação de estar feliz pelo rosto, parecia bem contente enquanto relatava sobre seu esposo. Quanto a mim, enquanto vamos para frente da residência para sermos recebidas pela mãe dele, não sei ao certo. Porém, não acredito que existia um vazio dentro da minha alma. Ainda possuo algo.
    Só não faço ideia do que pode ser.
    Com o passar do tempo, comprova-se que, se eu não me agarrar a um pedaço de carne, não posso conseguir sobreviver a uma pressão exercida por mudanças. Havia amigos que começam a se afastar e outros que se aproximam mais. Sob o redor de uns, imagino fumaça negra e tóxica. Muitos diziam que começo a ficar cada vez mais frio, entretanto, não sei se esse seria o caso. É, talvez seja, mas se inicia um período onde você é forçado a demonstrar ousadia. Seus hormônios te fazem meio louco – e o mais estranho de tudo isso seria meu controle sob eles.
   Mamãe costuma me dizer:
— Ah, queridinho, você foi criado em um ambiente de bem. — e também beliscar minha bochecha.
   E logo acho que talvez essa seja a razão. No entanto, algumas coisas mudaram bastante em casa que a atmosfera (ao se entrar na porta, antes de bater nela, esperar ser atendido e ver a face de minha família) se tornou tensa. Era como as atitudes entre seus pais fossem semelhantes como estranhos tratam um ao outro, além do ponto de minha irmã passar a ficar realmente frágil e ter que passar por sessões de quimioterapia para tentar se tratar de um tumor que se criou no cérebro.
— Quer um pouco de suquinho, minha filha? — uma vez, meu pai diz na porta do quarto onde ela ficava por uma boa parte do dia. — Está quase na hora de você lanchar. Você tem que comer algo bom antes que possa se sentir mais fraca. — e faz uma tentativa de um sorriso.
— Quero. — é de dar soco no estômago vê-la parada na cama com cobertores, além de uma curva minúscula em seus lábios quando antigamente ela era tão mais alegre.
   Eu me acho aqui porquê, repentinamente, me deu vontade de conversar com minha irmã. A garota, dois anos mais nova do que um cara de dezessete como a mim, parece estar sozinha com a exceção das visitas constantes de nossos pais, de alguns de seus amigos e também do resto da nossa família. Cada vez mais, desanima-se dizendo:
— Não existe algo mais chato do que ficar parada. — e olha o desenho que passava na TV.
   Algumas vezes, quando estamos a sós, ela pisca os olhos algumas vezes e fala:
— Ernesto, você sabia que é capaz de, se nós sobrevivermos, nossos filhos terem isso também?
— Nem sei se vou ter algum filho para comprovar isso. — comento, ponderando sobre o tema.
— Por quê? — minha irmã se vira curiosa. — Você não quer ter sua própria família não?
   Nesses momentos, eu realmente me preocupo em dar uma resposta que possa a fazer ficar em paz. No entanto, aqui vai meu orgulho em manter os panos limpos e minha boca reproduz:
— Não estou pensando em uma, na verdade. Fora isso, ainda tenho vocês.
— Mas você realmente devia ir atrás de uma garota. — ela retruca, mas faz uma pausa e continua com desconfiança. — Ou um garoto. Você é gay ou bissexual ou coisa assim? — e ergue uma sobrancelha, em um tom direto que não consigo compreender.
— Eu não tenho interesse em namorar ninguém. — encaro-a. — Se é isso que está insinuando.
— Você deveria tentar. — ela faz uma careta de desaprovação, suspirando e olhando para cima. — A esse ponto, até aprovaria um garoto só para ver você ao lado de alguém. — olho-a, não entendendo qual é a lógica de me ver com um outro rapaz: o que havia entendido sobre eu não ter interesse sexual ou romântico em ninguém?! — Mamãe iria pirar e cortar seu pescoço se fosse o caso, mas... Deus, Ernesto, acho que não vou conseguir te ver em uma felicidade boba antes de morrer.
— Ei, você não vai morrer. — logo alerto a minha irmã. — Não temos nem a certeza ainda.
— Eles não vão conseguir fazer a cirurgia. — é a vez dela me avisar. — O tumor está em um ponto ruim da minha cabeça. Posso esperar que apenas não e cresça... hum, mais.
— Mas você não vai morrer. — tento assegurar, pondo minha mão na dela. — Você é uma das únicas pessoas que eu tenho, Gisela. Com quem posso brigar se não for com você?
— Que coisa cruel dizer isso justamente quando estou nesse estado. — observo um sorriso travesso, talvez um dos mais genuínos que vi desde então, se formar no rosto dela. — Vamos fazer assim... Vou ter um pouco mais de esperança. Afinal, quem quer morrer agora?
   O mais irônico nisso é que, semanas depois, vejo o túmulo dela. Embora lágrimas não escorram minha face, questiono como ainda estou de pé porquê sinto minha mão tremer dentro do bolso. Então, há uma pressão suave por cima do meu ombro direito e me viro para deparar-me com o garoto que, anos atrás, costumava ser uma das pessoas que mais agiam como se fossem meus amigos.
— E aí, Ernesto, quer tomar um refresco? — e assim, nós vamos para uma lanchonete para comer alguns petiscos e tomar uns copos de refrigerante enquanto conversamos sobre várias coisas.
— Faz tempo que não te vejo pelo campinho. — conto, após morder um sanduiche com mortadela, verduras e queijo, ao mencionar o campo de futebol onde jogávamos quando crianças e onde costumo ainda passar um tempo na arquibancada. — O que anda acontecendo ultimamente para você andar ocupado? É algum tipo de estágio?
— Ah, quem me dera. — ele faz uma careta entediada e observo que parece estar de bom humor. — Bem que ando tentando uns bicos, mas não é esse o caso, caro amigo. Ando com uma banda. — e, em seu rosto, se abriu um grande sorriso que mostrava um pouco de seus dentes.
— Uma banda? — pisco meus olhos, surpreso antes de tomar um pouco do meu refrigerante de laranja. — Desde quando você está tocando em uma banda? Se estou certo, é guitarrista?
— Como você adivinhou?! — ele quase se sobressalta ao mastigar, quase se engasgando.
— Você vivia olhando os caras tocando guitarra. —não tenho culpa de ter uma boa memória.
    Dessa forma, nosso dialogo durou por mais alguns minutos antes que ele se retirasse. Em primeiro momento, sentado neste lugar e sendo visto por uma garçonete curiosa, imagino que esteja inconscientemente devorando uma parte dele. Afinal, alguns dos pilares da minha vida estão se esvaindo ou já sumiram. Cutucando a superfície da mesa, tentando fazer um barulho com ritmo, penso se não está na hora de eu tentar me confiar a ninguém mais do que a mim próprio.
    Suspiro. Talvez já não tenha passado da hora ou... Pestanejo, meio cansado, pondo minhas mãos no rosto e resmungando baixinho sobre minha vontade ser fraca. Pago minha conta e saí do estabelecimento, tendo o número de Haroldo no bolso, e volto de ônibus para casa. Sou assaltado por um garoto que tem o olhar descontrolado, estou vivo, mas... Sinto que vacilo em algo.
   Mas no quê? MAS NO QUÊ?!
   Tento estudar para me tornar um ótimo advogado. Não tenho grandes pretensões, mas, ao menos, acho que seria legal cumprir algum dos desejos de meus pais. Ler vários livros sobre diversas matérias é, com sinceridade, muito cansativo e não me faz sorrir muitas vezes, mas talvez seja o máximo que minha mente possa conseguir. Tento fazer algumas caminhadas por dia, durmo o suficiente, como o necessário, cuido-me bem e... O que está realmente faltando?

   De pijama à noite, sem conseguir adormecer em um dia, questiono-me se estou vivendo ou se estou sobrevivendo. Recebo algumas ligações perto do amanhecer de Haroldo, ele me contando coisas que parecem ser bacanas para as pessoas que não se acham máquinas. Tinha namorada, pais, irmãos, amigos e tudo. Não consigo vê-lo desanimado, exceto com preguiça.

    Porém, isto muda quando recebo, ao invés de uma chamada, uma mensagem de texto. Dizendo para que meus pés possam correr até a um ponto escuro perto de um beco, perto de uma praça e perto de uma igreja. É um edifício antigo, verifico antes de entrar e me deparar com uma pessoa completamente diferente no telhado a um passo de pular. Seu desejo não é se salvar, para meu total desespero, mas apenas conversar. Há lágrimas em seu rosto, apesar do “sorriso de palhaço” como minha irmã diria.

    Não sou o único a subir. Há algumas outras pessoas. Lá em baixo, há aqueles que olham com terror e outras com euforia. Tento organizar minhas palavras com um cuidado trêmulo, a fim de que ele não se machucasse. Era como ver a morte de Gisela de novo, mas... Em um cenário, personagens e uma história bastante diferentes. Enquanto ele tem tudo, eu tenho nada.

   “Por que você quer pular?”, lembro ter questionado, “Você parecia ser tão feliz”.

   “Nunca formos muito diferentes nesse aspecto”, Haroldo me disse, “O vazio, Ernesto, existe”.

   Nenhuma de nossas palavras adiantam, porquê, como ele tinha dito, isto é apenas uma despedida. O corpo paira no ar, face sorridente, antes de apenas cair no frio. Dia seguinte, investiga-se a morte, já tabelada como suicídio, para averiguar as causas. Enquanto as discussões são postas, fico aqui, pensando “Por que ele, não eu” e “Ele tinha tudo e eu tinha nada”. Meu pai me busca, compreensivo de minha confusão com seres humanos, e me leva de volta para casa.
   Se é que posso chamar de casa. Além de estarem agindo como estranhos entre eles mesmos – mamãe desconfiando de todos contra ela, papai ficando cada vez mais triste –, vejo-os como estranhos a mim também. Há uma alergia estranha por baixo dos olhos da minha mãe e meu pai se cala desde anos atrás. Nossos cafés, almoços e jantares são tão frios quanto a geada.

 CONTINUA...


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4 comentários:

  1. Nossa...de verdade. Até me arrepiei! Não posso negar que me sinto assim em alguns momentos! Obrigado por isso. Abraços

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    1. É mais ou menos como um retrato de um perfil psicológico humano, então fico feliz =)) De nada, abraços também ô/

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