Hoje trago a vocês a primeira parte de uma minissérie ('Apertamentos') que começo a fazer após uma ideia compartilhada por um amigo da faculdade (oi, Arthur) quando falávamos sobre residências :)
Envolve a convivência de uma garota (Gabriela) com apartamentos e outros aspectos durante sua vida.
Bora dar uma lida? :D
AMIGAS DE VIZINHANÇA
Apertamentos: esse foi o
termo que uma professora da segunda série havia usado na matéria de Geografia
da minha escola. Ela indicou brincando ao falar sobre apartamentos, ‘coisas’
que surgiram um tempo depois das casas ‘que crescem na horizontal’. Na época,
achei só engraçado, como parecia fazer sentido, então apenas sorri para mim
mesma e disse “Aper-ta-men-tos”.
Desde que me vi como um bebê
– mamãe provaria isso com várias fotos em minha versão mais “doçura gorduchinha”
–, eu moro em apartamentos. Descobri entre os 6 e os 12 anos que meus pais não,
porém eles viveram em apartamentos há mais tempo do que eu.
O primeiro prédio em que
morei foi um conjunto habitacional que ficava perto de um shopping, com uma
igreja dentro, uma praça de alimentação dentro e de três postos de gasolina. As
ruas próximas ao conjunto eram muito bem movimentadas, mas não senti tanto até
mais ou menos aos 15 anos quando comecei a sair do conforto das caronas
corridas de meu pai.
Minhas rotinas dos 7 aos 11
anos se baseavam em ir para a escola nos dias de semana pela tarde e brincar
com os meninos da minha rua. “Mamãe, eu quero brincar com a Drica e com a Angi
hoje, eu posso, eu posso? Por favor!”, era o meu primeiro clamor antes da
escola, sabendo que as meninas, as crianças que eu me sentia mais próxima,
poderiam estar disponíveis naquele horário antes do almoço. Minha mãe apenas me
olhava com carinho, embora não deixasse de ser mão de ferro ao dizer “Tudo bem,
querida” caso não houvesse algum compromisso de família e, se ela desconfiasse
que eu não estava limpa, ainda diria “Mas dona Gabriela, você não está
esquecendo de algo não?” e ficaria naquela posição de braços cruzados e olhar
bravo.
Geralmente meu pai dava uma
mãozinha em convencer minha mãe de que eu poderia ir brincar com os meninos na
rua ou então de trazer uma ou duas para dentro de casa para brincarmos com o
monte de bonecos que eu tinha dentro do meu quarto. “Bom”, Drica dizia uma vez
quando reunimos um grupo com Angi, duas primas dela e uns garotos que chegaram
recentemente ao condomínio, “você não é a única assim com os pais. Algumas
vezes eu tenho que implorar pra eles deixarem”.
Naquele dia, meus pais
tinham saído e me deixaram com meus colegas de vizinhança apenas por um dos
pais estar de olho na gente. No caso, era o Sr. Jânio, que se sentava em uma
cadeira de balanço azul em um parquinho perto de nossos blocos. Ele era um cara
alto, magrelo, vestia a camisa do Flamengo e era peludo. Mas meu pai era peludo
e eu me via peluda também ao abaixar para ver minhas pernas e o pelo que havia
nelas.
“Mas e aí”, João Victor nos
chamou ao espreitar, com certo ar de superioridade, a camisa do homem, “a gente
vai brincar de manja-pega ou de barra bandeira?”. A primeira coisa que me
chamou atenção nele, levantando-me com meu vestidinho que mamãe tanto se
orgulhava em pôr em mim, foi mais sua expressão corporal. Sempre sou chamada
mais pela expressão corporal. Acho que isso me chamava tanto a atenção que
começava a borbulhar na minha cabeça que dava medo olhar no olho da pessoa por
mais de três segundos. Depois, é que se processou o que ele falou para nós
seis.
“Que tal manja-pega?”, Drica
sorriu enquanto sugeria e qualquer um enxergaria que ela estava realmente
excitada com a ideia “A gente pode decidir isso no jo-ken-pô”, mal dizia isso e
já jogava a mão para trás com um jeito que falava que ela queria só participar,
“Quem tá comigo, hein?”.
Naquele instante, engoli em
seco e senti um frio na minha barriga. Virei, como uma câmera se movendo em um
ângulo de 180º para a direita, minha cabeça para poder observar o cenário da
brincadeira. Estávamos reunidos entre dois blocos de três apartamentos
verticalmente e cinco apartamentos horizontalmente para cada frente. No meio,
uma rua aberta, como o conjunto pertencia à prefeitura, e nas laterais os
portões e os estacionamentos a céu aberto. Em cada canto do prédio, um pequeno
jardim com árvores floridas e algumas pequenas plantas. Aquilo tudo era muito
grande para eu ter vantagem.
Entre as seis crianças,
ainda que duas fossem mais novas do que eu, eu era conhecida por ser a mais
lenta em corrida. Na verdade, eu não possuía muita habilidade em qualquer coisa
que envolvesse atividade física. Drica não tinha com o que se preocupar: ela era
uma das melhores corredoras e a mãe dela vivia dizendo o como a filha era boa
jogando esportes como futebol, vôlei, basquete e queimada. Não era à toa que,
nas horas que eu não era a manja, geralmente recorria por socorro a ela.
“Ah, eu tô com sombra pro
meu lado”, resmungou um outro garoto, primo de João Victor, embora logo a cara
de desânimo desaparecesse com seu sorriso travesso que o fazia parecer um
pirata com a bandana do Caprichoso que usava em cima dos cabelos castanhos, “Eu
vou logo falando. Vou pegar todos vocês rapidinho”.
Eu estremeci quando ele
falou aquilo, pois achei que eu seria a primeira a ser pega. “É claro”, notando
meu desconforto, Angi deu algumas batidas em minhas costas, “você pode ser
nosso café com leite”. Apesar de todo o medo que eu concentrava em mim, eu
direcionei um olhar apreensivo para a direção dela. Eu imaginava “Eu não quero
que o pessoal me desconsidere por pena” e isso me deu mais animação para poder
negar a oferta. Assim que fiz isso, Maurício me espiou, estranhando, e encostou
seu peso em uma de suas pernas e esticou a outra. “Se é assim”, o menino
soprou, “já sei quem vou conseguir achar primeiro”.
Isso me assustou um pouco,
embora àquela altura as minhas amigas tenham interpretado isso de uma forma que
eu nunca imaginaria se elas não tivessem me enviado aquele olhar. “É melhor
correr, não acha, amiga?”, Angi, com seus olhos cheios de intenções travessas,
deu uma batidinha no meu ombro como uma forma de incentivo. “Angi”, repreendi
baixo, “olha a graça”. Na certa, depois ela e Drica discutiriam sobre formação
de casaizinhos. Que iriam para o conhecimento de suas mães. Que iriam para o conhecimento
da mãe do garoto. E pior do que a associação de mães de seus amiguinhos sabendo
era sua mãe sabendo e ela dando alfinetadas sobre isso durante uma semana no
clássico estilo “E aquele garoto ali, filho da fulana de tal?”.
Se havia uma coisa que
aprendi vivendo em prédios na minha vida toda foi que, quando você mora em um
conjunto habitacional em que gente de dois prédios se conhecem, as notícias
sobre a chegada e sobre fofocas circulam como se estivéssemos em uma cidade
pequena. Uma prova disso foi a chegada dos dois primos para nosso conjunto. Em
menos de três dias, quase todo mundo dos blocos sabiam que eles vieram de São
Paulo, a idade, o nome da mãe e do pai e no que os pais trabalhavam. Ali, na
brincadeira, acreditei ser talvez a única menina que não tinha pensamentos:
para distrair a curiosidade da turma, eu inventava sobre “um menino muito
bonitinho chamado Ezequiel que conheci na escola” para poder Drica e Angi
pararem de adivinharem minha vida amorosa por mais que eu achasse aquilo, na
verdade, super precoce.
“Comecem a correr... A regra
é contar até dez, não?”, ele disse, com um sorrisinho, e chegou diante de um
posto de luz para encostar a cabeça ali, “um”.
“Drica”, eu sussurrei muito
baixinho pra minha amiga, “me ajuda”, e não precisei terminar de suplica:
vendo-me perdida como boa parte do pessoal corria para todos os esconderijos
que pensei serem perfeitos, a mão dela segurou meu braço. Nós duas corremos o
máximo até a um portão, a entrada do andar abaixo de onde ela residia, e
atravessamos o que ficava trás. Havia muitos carros, vermelhos, prata, cinza,
amarelo, azul, preto... Uma porção deles estacionado naquele lado do prédio.
Para nossa sorte, os portões já estavam abertos, então, pelo menos quanto a
isso, não precisávamos nos preocupar.
Sob nossas cabeças, em
algumas grades de janelas se encontravam roupas ou alguns vasos de plantas. Em
outros casos, uma mulher segurando um bebê no terceiro andar, uma velha senhora
curiosa um pouco mais pra a esquerda e em um dos apartamentos do térreo haviam
um grupo de adultos bebericando em uma vaga de estacionamento. Entre eles, uma
mulher de vestido dava comida a um bando de felinos que miam e ronronavam em
sua presença. Entre nós e o mato que envolvia parcialmente o conjunto: um muro
com cerca elétrica.
“Ele já deve estar a caminho”,
Drica cochichou pra mim, “Você fica agachada perto daquele carro vermelho, está
vendo? Você fica ali, mas mantém um olho caso você ver alguma presença
suspeita. Tenta ver se é ele mesmo. Se não for, você grita”. Quando ela me
disse isso, como uma irmã quem instrui a mais nova, só fiz estreitar os olhos e
não acreditava no que ela estivesse dizendo: não sabia quantas vezes eu ouvia
mamãe dizendo isso, depois de casos de roubo e dois de assassinato naquele ano
entre os vinte e dois blocos existentes ali.
Fiz sinal de alternativo. “E
você? Você vai ficar onde?”. Ela me contou que iria ficar em um lugar a quatro
metros de distância dali, apontando para a parede lateral do prédio próximo de
umas árvores. Não demorou dois minutos que ficássemos juntas na tensão de
sermos descobertas e obrigadas a tentar escapar, como um dos menores começou a
gritar “Você não vai me pegar não, eu sou invencível! OLÊ!” e que ouvíssemos a
voz da criança se aproximar até nós.
FIM DA PRIMEIRA PARTE
~x~
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