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quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

[FEITO A MÃO] Relembranças


Observações: Lucie está viva após terminar o seu provável último trabalho universitário. Apesar de eu conhecer várias Julianas, escolhi o nome pelo seu significado e por combinar com a personalidade da mãe de Ricardo :) É também uma história curta que antecederá outra série (isso mesmo, meus amigos, se preparem!).

Resumo: Juliana Delgado, sobrenome de solteira Almeida, conversa com seu esposo Guilherme sobre ser mãe do filho primogênito Ricardo.


Uma imagem para ilustrar a família :) Fonte: Adobe Stock

RELEMBRANÇAS

Capítulo Único - Protótipo


- Eu não disse ao universo para ser mãe – foi o que eu contei a ele – Mas parece que o universo tem outros planos para mim, não acha?
- Juli – com carinho, o homem me chamou com um sorriso parecido com o que ele tinha quando o conheci – você falando assim... Até demonstra que está tentando se assegurar com a situação agora – olhei para o fogo que fora acendido no fogão antigo de nossa cozinha e devaneei.
Estávamos quebrados. Nosso financeiro tinha se quebrado. Meu marido havia sido demitido como atendente de uma loja de sapatos por causa da reclamação de duas jovens arrogantes. Queria muito ter estado na hora para provar a inocência dele – e como ele era inocente, tão semelhante à nossa criança! – e ter estapeado os dois seres gosmentos vestidos de adolescentes.
Mas não podia por causa da minha cria. Do meu filho, o nosso filho. Como mãe, devia dar o meu melhor para manter meu filho sob minhas vistas. Era ali o seu lugar enquanto fosse um projeto de gente.
- O importante, Juli – percebendo que eu não respondia à realidade, Guilherme pôs uma de suas mãos num ombro meu para tentar me acalmar – é que estamos nessa juntos. Posso arranjar um bico na empresa do meu irmão. Posso trabalhar como um entregador de pizzas aqui em Goiás. Não é necessário Ricardo saber disso, é claro.
- Claro que ele não deve saber, idiota – mexi no macarrão da panela com uma colher de madeira – Sabe como nosso filho tem muita sensibilidade – fiz uma longa pausa antes de continuar a falar – Tem vezes que não sei como consegui ser a mãe que sou hoje, porém, tenho confiança que tudo ficará bem. Minha preocupação é mais se eu não deveria fazer alguma coisa.
- Como o quê? – ele afastou a mão e passou a se distrair em mexer o picadinho que fritava em uma frigideira.
- Trabalhar – bati a colher de leve na panela e notei minha voz deixar claro minha irritação – Arrumar um emprego. Posso perguntar do bar do Seu Tomé se ainda há vagas para atrações musicais – olhei séria para meu marido e Guilherme pareceu ficar com os olhos castanhos alertas quanto a proposta – Lembro... Lembro bem na época dos meus 22 que eu afiava a voz, recebia bons trocados dos senhores que iam ao bar. E Seu Tomé gosta de mim como quase filha dele.
- É verdade – Guilherme riu e abaixou o fogo, com certeza com medo de queimar uma parte da nossa ceia – O velho não conseguiu uma filha com a mulher, então te adotou, né? Mas fica esperta com a dona. Essa dona é brava que só...
- Não consigo pensar em como retribuir os dois, falando nisso – prolonguei o assunto, hábil em saber que precisaria de oito minutos para a massa ficar pronta – Quando Ricardo nasceu, eles foram os primeiros a nos prestar apoio e dar um presente. O primeiro berço do nosso filho. Cantar de novo seria uma ótima desculpa, se não fosse uma questão...
- Qual? – ele foi até a geladeira, abriu e encarou a parte de baixo na procura de algo para temperar.
- Com quem deixar nosso filho – respondi, tampando a panela do macarrão – Você sabe que não confio em ninguém além de nós dois para cuidar dele.
Houve um silêncio significativo, mesmo quando Guilherme encontrou uma cebola, um alho e um pimentão. Eu não poderia ser a única a lembrar da última treta que aconteceu entre nós e a escola particular que nos esforçamos para pagar naquele ano. Nenhum de nós sabia qual era a insistência dos professores incompetentes em não se colocarem no lugar de uma criança como a nossa.
Tá, tá certo que nosso filho se destacava entre os outros por... suas únicas características. Ele via coisas que não estavam nos nossos olhos, sentia coisas que nós não percebíamos com qualquer exame existente e ouvia coisas diversas e absurdas. A psiquiatra que encontramos o categorizou como uma criança esquizofrênica. Não sou religiosa, só que... Tem coisas que falam que é esquizofrenia, mas não fazem sentido.
Como meu filho ainda bebê chorou antes de um raio atingir minha mãe que o segurava na praia?
Como meu filho, com dois anos, detectava quando seu pai vinha do trabalho?
Como meu filho, com sete anos, sabia onde estava guardado o urso de pelúcia de uma menina que ele mal teve tempo de conhecer na escola passada?
Mais: apesar das consultas psicológicas – as que faço questão de acompanhar – e dos esforços de todos os médicos para onde formos, os remédios não fazem muito efeito para controlar o que ele vê, sente e escuta.
Por isso, Ricardo é considerado fracote por cada grupo de minivalentões que existia em todas as escolas para as quais formos. Presa fácil. Devido a essa situação, eu tento ser mais incisiva e rígida com ele para que ele seja forte. Um menino forte que eu sei que ele se tornará. Muitas mães, pagando de boazinhas e bons costumes, dizem que sou fria por causa disso. Ah, que cuidem dos seus! Só queria ver minha cria, filho do meu sangue, não ter que se achar o pior das criaturas por causa do inferno que os filhos delas faziam!
Mas nem sempre a situação ficava sob meu controle. Nosso controle. Guilherme é mais gentil, mais brando, mais parceiro. Ele ouvia as dificuldades de Ricardo e muitas vezes intervia na minha mão espartana quando achava necessário. Às vezes, eu precisava dessa intervenção para sair do meu personagem. Para poder parar.
- Você é a melhor pessoa que pode cuidar dele – meu marido já picava os legumes para colocar no picadinho – Eu acredito em você. Só acho muitas vezes você dura, mas sei que você se importa com ele e o conhece melhor. Até conhece melhor do que eu.
- Jura? – estreitei os meus olhos – Eu não sei não.
Apesar das dificuldades, pensei, até que não era ruim ter uma família como aquela.

FIM

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