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sábado, 4 de maio de 2013

[FEITO A MÃO] O Velho e a Máquina

O conto de hoje aqui no Feito a Mão foi enviado pelo leitor e escritor Leonardo Almeida.
Bora conferir?

O Senhor Thomaz ganhava a vida consertando máquinas de escrever. No último andar de um prédio no centro da cidade ele continuava seu ofício de décadas, com seu radinho à pilha ligado na estação de notícias.
Quem buscasse seus serviços se espantaria com os arredores do escritório, como foi o caso de um rapaz chamado Ivan. Ivan gostava de literatura e dos assuntos relacionados a ela, e talvez por isso as vezes ficava chocado, quase admirado, com a realidade ao seu redor, principalmente em lugares como o centro da cidade.
Descendo na estação central de metrô foi andando pelas ruas cada vez mais estreitas até chegar à viela de ladrilhos, sem asfalto para carros, aonde ficava o prédio que procurava.
Entre um depósito de correios e uma loja de sapatos sem luz elétrica encontrou a porta com o número que tinha anotado na mão. Na entrada viu um homem fumando um cigarro sem marca, de braços cruzados e mangas dobradas, e ao lado dele um velho com um estandarte do tipo “COMPRO OURO” pendurado ao redor do pescoço.
Sabia que estava em uma região perigosa, e sabia que viam que ele não pertencia ali. Inseguro, se fez de sério, acenou com a cabeça para o homem que fumava e entrou no prédio devagar.
Olhou o painel que descrevia os andares do prédio. Era do tipo antigo, com letras amarelas coladas em um fundo preto cheio de buracos. Nenhum dos títulos ali estava completo. No último andar havia apenas “Th m z Tes a s ca - M quin     E cr   r” listado. Chamou o elevador.
Quando entrou, mais dois homens que estavam na rua entraram imediatamente e apertaram o botão do sexto andar. O elevador de grade se fechou e Ivan ficou assustado, mas eles desceram de fato no sexto andar e ele continuou subindo.
No oitavo andar desceu, e viu que só haviam quatro portas. Uma escada de incêndio e um banheiro em sua frente. Uma porta aberta, de onde vinha o som de uma voz no rádio, e uma porta fechada ao lado.
Se aproximou da porta aberta apreensivo, e ao colocar a cabeça pra dentro viu um velho menor que ele debruçado sobre uma mesa, estendendo papel de jornal. A sala cheia de máquinas de escrever em diversos estados e com cheiro de querosene e óleo, só podia ser essa.
Ainda assim, disse “Senhor Thomaz?” e o velho se virou. Um velhinho bem comum, com calças bege e uma camisa azul clara de mangas curtas, disse para ele entrar. O jovem, com medo da região, carregava a máquina no colo como uma criança, e o velho abriu os braços para recebê-la. Ivan colocou a máquina nas mãos do velho, mas não largou-a totalmente até ele colocá-la sobre a mesa forrada de jornal. Abriu a maleta de couro de borracha e começou a contar que havia ganhado a máquina de um amigo. O pai do amigo tinha o hábito de não jogar nada fora, e o amigo, querendo cuidar do pai começou a doar as coisas mais antigas. A máquina de escrever estava quebrada, mas Ivan a quis, e por isso levou para o conserto.
O Sr. Thomaz examinava o estado em que ela estava enquanto ouvia a história. Então olhou nos olhos do jovem e perguntou se ele gostava de máquinas de escrever.
Os óculos do velho unidos no meio por um band-aid, caiam pelo nariz e seu olhar assustou um pouco Ivan. Parecia uma coruja, mas não com os olhos totalmente abertos, ou sonolentos, mas pronta para sair voando atrás de uma presa.
O rapaz se assustou e começou a olhar ao redor, enquanto explicava nervoso que gostava sim de máquinas de escrever, que gostava de escrever mas não confiava em computadores. Olhando o escritório começou a se empolgar e contar que odiava principalmente impressoras que sempre davam problemas, e mesmo quando funcionavam bem nunca lhe agradavam. Enquanto falava isso viu uma impressora antiga toda quebrada encostada em um canto, e ficou com medo de ter falado besteira. Os olhos do velho soltaram um rápido lampejo nesse momento, mas Ivan não viu. Se visse, teria ficado com medo, mas não era exatamente um olhar de ameaça.
Perguntou se a máquina tinha conserto, e o velho disse que sim, que tinha uma porção de peças de máquinas abandonadas ali e arrumaria aquela sem problemas. Ivan tirou da mala uma porção de peças que havia ganhado junto com a máquina, e não sabia bem para que serviam. Os olhos do velho reavivaram, e examinando cada uma delas jogou quase todas no lixo, com uma destreza impressionante. A voz dele estava alterada, quase brava, enquanto dizia:
- Isso aqui é de calculadora. Isso é lixo. Isso é tinta, mas está vencida.
E jogou tudo no lixo que mantinha por perto, cercado de pedaços de flanela estranhamente limpos.
Quando terminou, virou-se para Ivan, novamente tranquilo e disse que a máquina estaria pronta em uma semana. Colocou-a em outra mesa que mantinha por perto e começou a abrir gavetas cheias de peças. Ivan ficou sem saber o que fazer, então agradeceu timidamente o velho: “Obrigado Sr. Thomaz”. Sem resposta, saiu da sala de costas para a porta, olhando para o velho e foi para casa, sem saber o que achar.

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Ivan tinha um irmão mais novo. Seu irmão vivia ainda mais distante da realidade do que Ivan, e tentava há tempos conseguir um pouco de maconha para fumar, mas não tinha coragem de se arriscar nas vielas que seu irmão mais velho achava tão interessantes. Talvez isso fosse bom para ele.
Um dia, pediu para Ivan acompanhá-lo até um lugar aonde achava que conseguiria o que queria. Ivan conhecia bem aquele lugar, e sabia que o irmão tinha boa chance de conseguir o que queria, então achou melhor acompanhá-lo.
De fato, conseguiram um pouco de droga, mas o irmão, novo e idiota, quis parar em um bar para comemorar a “conquista”. Ivan não gostou da ideia e o irmão, talvez por querer exatamente se afirmar, sentou, pediu uma cerveja e começou a falar com o servente que tinha conseguido droga, que hoje a noite ia ser fenomenal. O servente nem respondeu. Ivan pagou o homem, tomou o resto da cerveja e puxou o irmão pelo braço.
Quando chegavam perto do carro para ir embora, havia uma viatura de polícia no caminho. Os irmãos entraram rapidamente no carro. Ivan deu a partida e quando olhou pro lado viu o irmão tentando enrolar um baseado. Colocou a mão direita sobre o serviço e olhou bravo para o irmão. Mandou-o guardar aquilo e rápido.
O irmão, novamente querendo desafiá-lo, começou a falar alto: “Maconha não é droga. Deixa a polícia vir, eu vou falar pra eles. Eles não podem me prender por um baseado. Nos Estados Unidos isso é liberado e...”. Ivan já tinha ouvido o irmão com aquela conversa dentro de casa, mas sabia que na rua, na frente de uma viatura, não era uma boa ideia.
Tentava manobrar o carro para sair logo dali, e o irmão insistia em fumar. Quase como se fosse mágica, um cigarro apareceu enrolado entre seus dedos, e tão rapidamente quanto, um policial surgiu, já com a arma apontada para o rosto dele.
Ivan suspirou e ouviu uma batida no vidro do seu lado. Outro policial, também com a arma na mão.
Desceram do carro. O irmão continuava falando. Ivan quase desejou que fosse preso, mas sabia que se fosse, ele iria junto. Por mais que seu irmão fosse ingênuo, hoje estava passando de todos os limites.
No momento em que o policial deu uma coronhada nos lábios do irmão, Ivan ouviu um barulho de telefone tocando distante. Tocou mais alto uma segunda vez e ele acordou.
Do outro lado estava o Sr. Thomaz, dizendo que a máquina estava pronta. Salvara-lhe de um pesadelo. De mais de um, talvez.

Fez todo o caminho até o escritório, dessa vez um pouco mais tranquilo. Viu os mesmos sujeitos, chegou à salinha e lá estava sua máquina, com aquele cheiro característico de tinta.
O Sr. Thomaz estava sorridente. Satisfeito com o serviço, começou a lhe contar sobre a situação das máquinas de escrever no Brasil. Disse que só haviam mais três lugares onde se podiam arrumar máquinas atualmente em São Paulo. Uma grande empresa na Zona Sul e outros dois senhores como ele. Todos os outros saíram do mercado, por falta de serviço e de peças. Atualmente somente cartórios e empresas “ali da região” usavam máquinas de escrever.
Ivan falou que havia lido nos jornais que no ano passado haviam fechado as últimas fábricas de máquinas de escrever. O velho confirmou a notícia, disse que tinha uma em Guarulhos que se mudou pra África. Segundo ele, por lá ainda havia um mercado para as máquinas de escrever. Eram caras de se produzir, mas em uma região com baixa tecnologia e bastante mão-de-obra e minérios, ainda fazia sentido usar máquinas ao invés de computadores.
Ainda falou mais sobre sua vida, disse que tinha um filho gerente de banco, que morava na Espanha e que as vezes lhe mandava dinheiro. Disse ter orgulho do filho, e que sentia saudades, mas Ivan ficou em dúvida se aquelas palavras queriam dizer aquilo mesmo.
O velho lhe perguntou o que ele faria com a máquina.
“Gosto de escrever à mão...queria datilografar o que escrevo sem o computador. Até prefiro assim, acho que faz a pessoa pensar melhor nas palavras”.
Dessa vez ele viu o olhar do velho. As vezes seus olhos brilhavam de maneira que traía o resto do semblante afável. Na maioria do tempo parecia o vovôzinho cheio de histórias que todo mundo queria ter, mas nesses momentos parecia um veterano de guerra. Mas não era exatamente morte que havia em seus olhos, era um tipo de fogo. Era o instinto de sobrevivência.
Ivan sentiu um pouco de medo, mas sentiu que o velho não estava lhe ameaçando. Por um momento pensou em pedir um emprego, em pedir para ser seu aprendiz, mas sabia que não teria como o velho lhe pagar. Queria conhecer melhor aquele senhor, mesmo sentindo que isso poderia ser perigoso. Era jovem ou idiota demais para discernir admiração de perigo.
Disse que quando terminasse um romance, traria para o velho ler. Recebeu um sorriso, o velho novamente amigável, e sentiu que estava tudo bem. Pagou.
Ao chegar no elevador, viu que estava quebrado, e pegou as escadas de madeira.
Quando começou a descer, um homem grande e afobado passou esbarrando por ele. Não carregava nada nas mãos.
A máquina quase caiu do ombro de Ivan quando o sujeito passou por ele, e enquanto equilibrava o fardo e os pensamentos de quão perigoso seria dizer alguma coisa, ouviu um estrondo vindo da sala do velho, seguido por um assobio metálico.
Colocou a máquina no chão com cuidado e subiu correndo as escadas, pensando no pior.
Ao chegar à porta, viu a mão do velho no alto, por detrás da montanha de gente que era o desconhecido.
A mão, como uma pinça, segurava uma navalha com um fio de sangue que não chegava a escorrer.
Viu então que a outra mão do velho estava no pescoço do infeliz, segurando-o por entre uma flanela, a essa altura quase inteira carmesim.
As pupilas do garoto ficaram do tamanho de pontos em uma folha em branco. No rosto tinha um sorriso febril. Em um só golpe morreram juntas todas as coisas que já lhe disseram que ele não deveria, poderia e conseguiria fazer. Se sentiu na presença de uma força mais verdadeira do que o que havia aprendido até então com pais e livros. Conheceu a morte, e consequentemente, a vida.
O velho manobrou o corpo com uma mão só, deixando-o cair sobre a mesa forrada de jornal, como um mágico hipnotista colocando uma assistente para dormir. O rapaz nunca havia visto uma cena tão bela em toda sua vida.
Senhor Thomaz não deu sinais de notar a presença de Ivan, enrolando a cabeça e o pescoço do atacante em um calhamaço de jornal. Retirou um saco de lixo de uma gaveta e colocou o sujeito lá dentro, até os ombros. Com um grampeador, prendeu a borda do saco na roupa do homem e apoiou-o na mesa pelo peito, deixando-o com a cabeça pendendo da mesa, aparentemente para segurar o sangue.
Quando olhou para a porta Ivan já estava do lado de dentro, e já havia fechado-a. Viu que a expressão do garoto não era de medo, mas de fascínio doentio, suspirou e pegou outro saco de lixo, junto com uma caixa de ferramentas. Abriu a porta. Olhou para Ivan, e disse:
“Você carrega ele. Sobre o ombro, cuidado com a cabeça” e se dirigiu para o banheiro.
Quando chegou no banheiro, Ivan viu que os olhos de coruja estavam de volta, dessa vez não por um momento, mas em horário de serviço. Algo nele estava respondendo a isso. Queria ver o quão longe aquele velho ia. Sr. Thomaz estendeu um saco de lixo no chão, aberto, e retirou um cutelo da caixa de ferramentas. Deu para o rapaz. “Você corta atrás dos joelhos, dentro dos cotovelos e a cabeça, se conseguir. Eu termino”. Tirou um cachimbo da caixa e começou a encher de fumo.
Ivan hesitou por um segundo, mas vendo o corpo estendido no chão lembrou do medo e da frustração que sentira durante o dia e começou a trabalhar. Cortou até a cabeça. Ficou encharcado de sangue.
Enquanto trabalhava, o Sr. Thomaz explicava fumando pra ele o que estava acontecendo ali, em uma voz totalmente diferente da anterior. Não era mais um velhinho amigável, era de fato uma ave de rapina:
“Quando eu comecei a trabalhar aqui, era bom e barato. O centro era o lugar para se trabalhar. Todos os jornais eram aqui, as peças eu arranjava aqui perto e nunca me faltava serviço. Com o tempo, o preço não aumentou diretamente, mas os problemas que apareceram começaram a custar caro. Isso aqui virou a região dos cafetões e dos traficantes, e eu comecei a sair do trabalho cada vez mais cedo. Hoje em dia essas máquinas, principalmente as peças, são relíquias, e sempre aparece um imbecil querendo me levar pra roubar o meu escritório. Imagino que venham da empresa grande que eu te falei. Eles não podem me matar, ninguém aqui morre sem ordem dos que mandam de verdade na região, então eu acabo ficando ironicamente seguro. Mas eu sou um velho. Se eu deixar, eles me espancam e me levam, então eu preciso matar eles primeiro. Eu pago minha proteção aqui, moro aqui desde quando esses traficantes eram trombadinhas, então eles aceitam que eu desove um cadáver ou dois por semana. É só cortar direitinho e colocar num saco de lixo. Dá isso aqui”.
E o Sr. Thomaz cortou as juntas que faltavam. Colocaram tudo em um saco de lixo e carregaram até à quarta sala, aquela que estava fechada anteriormente.
Ivan estava fascinado. Se imaginava num livro, como aprendiz de assassino ou coisa do gênero. “E agora Sr. Thomaz?”
“Agora você vai no banheiro e fica só de cuecas, tem um chuveiro lá, vamos ter que tomar banho e lavar nossas roupas”.
Ivan entrou no banheiro e já puxava o sangue com um rodo até o ralo, quando o velho chegou, também de cuecas, com uma toalha e outros utensílios na mão.
O rapaz puxava o sangue até o ralo, e disse que não contaria à ninguém o que aconteceu ali. Disse que entendia perfeitamente o que o velho passava, e que admirava sua tenacidade. Que não devia ser fácil se manter vivo dessa maneira, e que ajudaria como pudesse.
O velho colocou uma mão no ombro do rapaz, e quando este se virou sorrindo, não viu a navalha que já havia lhe cortado a jugular. Sr. Thomaz cobriu a boca do garoto antes que o sorriso virasse espanto, e o segurou enquanto ele caía no chão, devagar. Os olhos voltaram ao estado amigável por um segundo, e ele disse:
“Obrigado”.



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4 comentários:

  1. Nossa, super legal!
    Muito bem escrito, gostei muito!

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  2. Muito obrigado! Obrigado pelo espaço aí, pessoal do NRA :)

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  3. Muito boa a narrativa desse cara, redondinha, com um final sutil e inesperado, que de fato é o único final possível. Gostei. Só faltaram os links pra mais textos desse cara, não consegui achar mais na net.

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    1. Obrigado! De fato esse é o primeiro que publico na internet, mas fiquei muito feliz de saber que gostaram. Enviarei mais textos em breve :)

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